Prestes, Capitão do exército, em serviço no Rio Grande do Sul, 1923-1924. Imagem recortada de uma foto presente em [1].
Comecei a ler a biografia de Luiz Carlos Prestes, escrita por Anita Prestes [1], e sou apresentado a um certo embate entre ele, em sua postura ética com as contas do Estado, contra Simonsen, outro jovem, mas já se beneficiando de recursos estatais como um parasita.
Estamos num momento em que o jovem militar estava forjando seu entendimento político sobre nosso país, não numa perspectiva socialista, mas num viés pequeno-burguês ainda.
Essa relação de Simonsen com o governo, se apresenta na construção de quarteis, à qual Prestes devia fiscalizar, e que era tocada por empresas privadas em contrato com o Ministério da Guerra, majoritariamente a Companhia Construtora de Santos.
Muito contrariado com a falta de condições para realizar os trabalhos que lhe eram atribuídos, Prestes executava o que podia, com o mais absoluto rigor, e começava a bater de frente com as oligarquias e suas indecentes relações com o Estado brasileiro.
E essas oligarquias tinham um grande representante e um império em construção: Roberto Simonsen, hábil em beneficiar-se de seus “contatinhos” e contratões.
Roberto Simonsen
Segundo Maza ([2], p. 79), “Simonsen é talvez a prova mais cabal de que os empresários industriais paulistas possuíam um projeto de hegemonia política que foi sendo construído no decorrer dos anos trinta”.
Tendo a industrialização do país como meta, Simonsen deparava-se com grandes obstáculos para seus interesses, advindos, segundo ele, principalmente de nosso passado colonial e posição subalterna em relação ao cenário internacional:
”(...) a falta de combustível, a deficiência dos transportes, as dificuldades de técnicos e de mão de obra apropriada, a falta de capitais.” ([2], p. 82).
Interessante que ele tenha trabalhado, logo depois de formado, na Southern Brazil Railway, empresa do empresário estadunidense Percival Farquhar, responsável entre outras coisas, pelo conflito conhecido como Guerra do Contestado, que oprimiu, matou e expulsou colonos, por conta da construção da estrada de ferro entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Além disso, também trabalhou na diretoria-geral de obras na prefeitura de Santos, e como engenheiro-chefe da Comissão de Melhoramentos de Santos, ocupações que devem ter possibilitado o tal networking que privilegiaria seus futuros empreendimentos.
Depois dessa sua atuação na administração pública, é a sua ação prática junto aos governos que nos interessa. Em 1912 funda a Companhia Construtora de Santos, conseguindo contrato com a prefeitura para construção de habitações populares na cidade, além de outras obras.
Para isso, consegue com o prefeito à época, uma lei que dava incentivos a investidores para essas atividades. Já aqui, críticas são aventadas por esse possível benefício direto concedido, à sua empresa, pelo poder público.
Mas para além de Santos, o que marca sua história são os quartéis, pelo país, construídos por sua empresa graças a contratos com o Ministério da Guerra:
“As obras de construção de quartéis, entre os anos de 1922 e 1925, realizadas pela sua companhia, deram-lhe a ideia de construção em série e fez com que seu interesse se voltasse aos processos de industrialização. De fato, neste episódio, o processo de racionalização não se limitou apenas à organização do trabalho, mas estendeu-se à padronização dos materiais, das instalações e dos aspectos arquitetônicos.” ([2], pp. 84-5).
Esses contratos foram conseguidos de forma nada republicana:
“Atrás de suas cordiais relações com Pandiá Calógeras, ministro da Guerra do governo Epitácio Pessoa, Simonsen consegue contrato para a construção de 103 estabelecimentos militares em 26 cidades de nove estados, obedecendo a um projeto oficial de expansão e melhoria das instalações do Exército.” ([2], p.100).
Entre muitas suspeitas e polêmicas, chega-se ao ponto em que Simonsen concede a si um auto perdão:
”()... a empreitada sofreu com múltiplos problemas de logística que envolveram dificuldades de transportes e políticas, como por exemplo, as revoltas tenentistas no sul do país. (...) sem contar as críticas de falta de concorrência das obras oferecidas à Companhia Construtora de Santos. A apuração de irregularidades que seria procedida em 1930 sobre esses contratos firmados “confirmaria a correção dos serviços prestados pela Companhia Construtora de Santos”, levando Simonsen a publicar, em 1931, sua obra A construção dos quartéis para o Exército, onde se defendeu de todas as acusações.” ([2], pp. 100-1).
Mas Prestes, jovem e virtuoso tenente, descobriu, anotou e denunciou as muitas irregularidades que encontrou.
Prestes auditando compras e obras
Sem provas de seu envolvimento com a revolta tenentista de 1922, Prestes é enviado do Rio de Janeiro para o interior do Rio Grande do Sul, como uma forma de punição, ainda que informal ([1], pp. 36-7).
A ele foi delegada a missão de fiscalizar a construção de quartéis nas cidades de Santo Ângelo, Santiago do Boqueirão e São Nicolau, pela “chefia da Comissão Fiscalizadora da Construção de Quartéis” ([1], p. 37). Estas cidades compunham um dos contratos entre o Ministério da Guerra e a Companhia Construtora de Santos, propriedade de Roberto Simonsen.
As condições para sua tarefa não estavam dadas, pois não existiam especificações escritas para que a auditagem pudesse averiguar e comparar o feito com o exigido. Entre idas e vindas, entre o Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, ele tenta se demitir por fala de condições para exercer seu trabalho.
O contrato, considerado por Prestes como “terrível”, responsabilizava a Companhia de Santos por pagar todas as despesas locais, e, uma vez aprovadas as notas, receberia um adicional de 10% sobre esses valores. Quanto mais rápido aprovadas essas contas, mais rápido recebiam do Ministério da Guerra.
O que Prestes avaliava como “normal”, era liberado, no que tinha dúvidas, mandava relatórios detalhados questionando a qualidade entregue ou outros motivos, o que atrasava todo o processo.
Certa feita, embargou uma grande entrega que chegou de trem, vinda de São Paulo, com material de péssima qualidade. Questionou a razão desse material vir de longe, com baixa qualidade, com custos maiores do que se isso fosse feito localmente.
Recebeu telegrama da Chefia ordenando a suspensão do embargo, mas, dada a sua avaliação, manteve sua posição, respondendo com outro ofício, e o embargo manteve-se.
Em um quartel, verificou que não havia um projeto adequado para o esgoto, e ele mesmo elaborou um projeto, visto que havia a possibilidade de que “descarregando num edifício, se levantasse em outro [risos]” ([1], p. 39).
Chegam os operários especializados para essa construção, mas iam apenas fazer o trabalho sem seguir qualquer plano (e recebendo diárias). Prestes embargou a obra, e foi, finalmente, demitido da função, “por necessidade de serviço [risos]” ([1], p. 40), sendo transferido para o batalhão ferroviário de Santo Ângelo.
E, nas palavras do camarada, “De maneira que essa foi minha vida com a Companhia Construtora de Santos” ([1], p. 40).
Anita ressalta que:
“Ao referir-se a essa empresa de propriedade de Roberto Simonsen, Prestes ressaltava que esse grande empresário era muito amigo do general Cândido Mariano Rondon, que, por sua vez ocupava o cargo de diretor do Serviço de Engenharia – o Departamento de Engenharia do Exército –, subordinado ao ministro do Exército. Nos escritórios da Companhia Construtora de Santos havia sempre um grande retrato do general Rondon.” ([1], p. 40).
Por fim, após todo esse processo, Prestes recebe um emissário do general Barcelos instruindo que contas não aceitas por ele deviam apenas serem devolvidas sem relatórios, o que Prestes também negou. ([1], p. 40).
Penso que essa experiência de Prestes reforça sua oposição, até então, “moralista” ao governo, que o manteria conspirando e suscitaria o que o levaria a um conhecimento do Brasil profundo, com a Coluna, e outro aprofundamento de posição, mas agora para a revolução proletária, no pós-marcha.
Referências
- PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015. 37-47.
- MAZA, Fábio. “Simonsen: industrialização, empresa e liderança empresarial” in Os Donos do Capital: a trajetória das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro. org. Pedro Henrique Pedreira Campos & Rafael Vaz da Motta Brandão, 78-103. Rio de Janeiro: Autografia; 2017.