Carta aberta à sociedade e à organização da Bienal de Quadrinhos de Curitiba
No dia 12 de maio, em meio à mais recente ofensiva israelense sobre a Palestina, recebemos com surpresa o anúncio de que a Bienal de Quadrinhos de Curitiba traria Rutu Modan, autora israelense de quadrinhos.
Isso, por si só, já configuraria, no mínimo, uma insensibilidade com o momento. Afinal, são 195 países no mundo, 26 estados brasileiros, e a Bienal precisa convidar justamente uma quadrinista de nacionalidade de um país que está realizando um genocídio contra um povo inteiro? E, mais importante: uma quadrinista que não tem uma posição clara sobre isso?
Nos comentários em seu perfil do Instagram, o evento foi questionado, porém a resposta foi um silêncio retumbante. Nesse momento, em que Israel se aproxima de uma “solução final”, em que ativistas estrangeiros levando ajuda humanitária, incluindo um brasileiro, são sequestrados por Israel em águas internacionais, e que Gaza pode ser considerado o lugar mais faminto do mundo, a Bienal optou por ficar em silêncio. Seus organizadores só se manifestaram em suas redes privadas para chamar os protestos de “gritaria de internet”.
Vale ressaltar que, inicialmente, a organização da Bienal foi questionada somente quanto à posição da autora a respeito do genocídio palestino. Não houve insultos ao evento, não foi exigido que desconvidassem a autora – afinal, há israelenses que são vocalmente antissionistas. No entanto, esse não é o caso de Modan – ao contrário, as posições da artista corroboram ainda mais para o fato de que é uma insensatez trazê-la neste momento.
Que se destaque: se as pessoas precisam pesquisar se você é contra um genocídio, talvez você não esteja se posicionando o suficientemente contra ele. A postura da autora é dúbia, sendo difícil definir seu posicionamento através de suas redes sociais, por exemplo.
Como cidadãos da potência ocupante, é imprescindível que israelenses que são contra a ocupação usem sua voz e se posicionem de forma enfática contra o genocídio e o processo de colonização da palestina – até porque, caso não o façam, correm o risco de serem usados como propaganda de Israel, principalmente no caso de artistas.
Em mais de uma entrevista ela reclama do fato de sempre lhe perguntarem primeiro sobre sua posição política, em vez de sobre sua obra. Sejamos honestos: o único motivo pelo qual o cidadão de uma potência ocupante não sente a necessidade de falar sobre o que está acontecendo é porque não é sobre sua cabeça ou na de sua família que estão caindo bombas todos os dias.
Em entrevista ao site “The Comics Journal”, ela diz ser “contra a guerra”, mas que ainda assim “enxerga a complexidade da situação”. Em entrevista ao site brasileiro “O quadro e o risco”, ela afirma que “Pra mim, é interessante mostrar como enxergo a vida aqui. A melhor parte disso é não resolver as coisas, porém mostrar a complexidade delas.” (grifo nosso). No posfácio da edição brasileira da HQ “Túneis”, ela afirma que “a insistência em determinar quem começou nos faz voltar cinquenta setenta cem, seiscentos, 3 mil anos no tempo”, como se fosse uma guerra religiosa, coisa de “malucos” (termo que ela usa para se referir aos personagens “extremistas” de sua HQ no posfácio da edição original, aliás).
Na verdade, a questão não é “complexa”, não começou há 3 mil anos e não tem nada de “maluco”: trata-se de um processo de colonização, que existe porque Israel é uma potência ocupante e genocida desde 1947, ano da primeira Nakba.
No mesmo texto, Modan afirma sobre as “narrativas (..) usadas como justificativa por cada um dos lados para a aniquilação do outro”. Os palestinos não querem “aniquilar” ninguém. Querem, sim, o fim da ocupação e a chance de retornar às suas terras e viver uma vida digna. O único “lado” que tem um discurso de aniquilação é Israel.
A autora tenta claramente vender a ideia de que os dois lados seriam iguais e de que o estado de apartheid não existiria – e, com uma boa retórica, busca equiparar o Estado invasor e a população do território invadido. A ideia de que seriam “dois lados” que desejariam igualmente o extermínio um do outro ignora o fato de que, de um lado, há um Estado armado até os dentes – com mísseis, um forte aparato militar, apoio militar internacional e uma maioria de soldados treinados-, enquanto do outro há apenas um povo que é sistematicamente agredido, um povo cujo direito a viver na própria terra lhe é negado, mas que resiste.
Ressaltamos aqui que o direito à resistência armada de um povo sob o jugo do colonialismo é reconhecido e regulamentado pela resolução 38/17 da Assembleia Geral da ONU de 1983. Mas, mesmo essa resistência armada não pode ser comparada militarmente com o poderio isrelense. A realidade é que o que estamos vendo hoje tem nome e sobrenome: colonialismo e genocídio.
Vale lembrar, ainda, que o posfácio citado foi escrito em outubro em 2024, UM ANO após os ataques de 07 de outubro de 2023, época em que já haviam sido assassinados mais de 40 mil palestinos e Israel já havia jogado em gaza mais bombas do que os bombardeios da Segunda Guerra Mundial em Dresden, Hamburgo e Londres juntos. Ainda assim, a autora parece ter alergia à palavra “genocídio”, e insiste na narrativa de “guerra” e “dois lados que se odeiam”, como se bastassem ambos deixarem de lado suas “maluquices” e dar as mãos para, então, reinar a paz.
Rutu Modan pode não querer que israel acabe totalmente com a Palestina, mas suas colocações desumanizam o povo palestino e retiram dele o direito à resistência.
Daqui a alguns anos, algumas pessoas vão dizer “eu não sabia o que fazer”. Mas nós sabemos, os palestinos estão nos dizendo o que fazer: demonstrar solidariedade, isolar Israel, fazer parar o genocídio. Trata-se portanto, de outra questão: o que QUEREMOS fazer?
Não há possibilidade de silêncio frente ao genocídio do povo palestino. Por isso, deixamos aqui nosso repúdio a essas posições supostamente neutras da autora e, ainda, à postura do evento, que não faz jus ao tema deste ano, “Futuros possíveis”. Só há futuro para a Palestina com o fim do colonialismo e da matança feitos por Israel.
Seguimos na luta por uma Palestina livre, do rio ao mar.
Coletivo Quadrinistas, Uni-vos FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil Comitê Árabe brasileiro de Solidariedade – Paraná Comitê de Solidariedade à Palestina de Curitiba