Memórias Invisíveis

Uma ficção autobiográfica que explora meus amores e devaneios

Da série “Memórias Invisíveis”

dez 2016

Anos depois me dei conta da violência praticada. Aquela despedida fria que se estendeu tão lentamente trazia consigo as cicatrizes de uma relação cruel. Éramos dois carrascos punindo implacavelmente um ao outro.

Atendi a uma ligação dela naquela manhã. Ela sempre me liga no mesmo horário, às 11 horas e 45 minutos da manhã. Todos os dias, sem necessitar de relógio, fico próximo ao telefone e aguardo ele tocar.

– Oi, ela disse.

– Oi, minha resposta soou desanimada.

Não tínhamos muito o que conversar, ficamos em silêncio ouvindo o respirar ofegante um do outro. Após alguns minutos rompi com o silêncio.

– Tchau, e do outro lado da linha ela ensaiou um “eu te amo”, mas não chegou a terminar de dizê-lo.

– Tchau, e após um breve silêncio ela desligou o telefone.

Ainda não sabíamos, mas sua próxima ligação seria a última.

Dois dias depois, em uma quarta-feira, por mensagem, como de costume, marcamos de nos encontrar na Estação Araguaia. Como era comum com as ligações, nosso encontro se deu às 11 horas e 45 minutos da manhã. Ela estava deslumbrante, como todas as outras vezes em que meus olhos devotos contemplaram o vislumbre daquela deusa sádica.

Mergulhamos um no braço do outro e nos afogamos em beijos úmidos e quentes. Não tenho o costume de fechar os olhos quando beijo e naquele dia ela também não fechou os dela. Quando nossos olhares se encontraram durante nossa oração a Vênus paramos por alguns milésimos de segundos e pudemos ver nas almas um do outro que o fim se aproximava. A morte, com dedos longos e gélidos nos envolvia em seus braços finos e descarnados. Era frio, porém aconchegante. Era inevitável.

Pegamos a linha 031 e durante todo o trajeto, envoltos nos braços um do outro e em silêncio, fazíamos nossas preces aos deuses pagãos da luxúria e do amor. Não queríamos o que estava por vir, mas, ao mesmo tempo, era tudo o que desejávamos. Aquela história já tinha chegado ao fim. Vivíamos um epílogo forçado, um rascunho mal feito de um romance de folhetim. Nosso amor era puro, real, ardente. Mas somente amor já não era suficiente e nós não nos bastávamos, já não nos saciávamos por completo. Havia sede, mas não de outras pessoas. Havia sede de nós mesmos. Tornamo-nos dependentes e aquela foi a nossa sentença.

Naquele dia ela estava mais desanimada do que vinha sendo comum nos últimos meses. Minha parada estava por chegar e a convidei para ir descer comigo. Seu silêncio era relutante, mas no fim ela cedeu ao próprio desejo em assinar nossa carta de alforria. Chegamos em casa e fomos direto para o quarto. Não tínhamos nenhuma pretensão. Eu apenas precisava pegar alguns documentos e iríamos embora. Eu a chamara para ir comigo apenas para ter um pouco mais da sua companhia pois havia algumas semanas que mantínhamos contato apenas por telefone. Ela sentou em minha cama e eu me inclinei sobre a escrivaninha para pegar os documentos. Olhei seus profundos olhos castanhos e sorri. Ela sorriu em resposta e puxou a manga direita de sua blusa revelando um dos seios. Eu sabia o que devia fazer. Ela sendo a Deusa que era exigia de seu ascético as preces de devoção que ela julgava poder exigir. E ela podia. Aquele simples ato de devoção tornou-se um ritual de luxúria e sadismo. Seria a última vez em que Deusa e ascético se entregariam mutualmente em benção e graça. O sexo foi rápido, mas os minutos que o precederam foram uma eternidade.

Após pegar os documentos que necessitava, nos vestimos e saímos em direção a parada de ônibus. Aquela era a primeira vez, após meses castos, que nos entregávamos mutualmente à luxúria de Baco e Afrodite e também seria a última. De mãos dadas, em silêncio olhávamos para nossas sombras projetadas à nossa frente.

– Precisávamos disso, eu disse. Não era para ter dito, mas queria acabar com o silêncio. As escolhas de palavras foram péssimas. Não a via fazia meses, seu cheiro, seu toque, seu calor. Sua presença sagrada fazia falta. Eu precisava dela, eu precisava de minha Deusa e necessitava entregar a ela toda minha devoção, minha vida em preces. “Precisávamos disso” foi tudo o que consegui dizer. Ela me olhou com aqueles profundos oceanos de cor castanha e sorriu. Um sorriso triste que perguntava “É isso que tem a dizer?”. A pergunta não feita cravou em mim e penetrou profundo, como se uma erva daninha qualquer crescesse dentro de mim e fixasse suas raízes nos poros dos ossos. A dor era como se agulhas fossem enfiadas debaixo das unhas à custa de marretadas. Não ali, não naquele dia. Mas eu chorei.

– Precisamos conversar sobre nós, definirmos os termos de nossa relação. Não posso ficar aqui, preso a você sem saber se amanhã a verei outra vez. Preciso saber se me quer somente para ti ou se estou livre para amar outras também. Diga-me e assim farei.

Fui cruel, como já havia sido tantas outras vezes.

E mais uma vez a cena de um filme noir se desenrola.

“Após arrastá-la pelo longo corredor a joguei sobre a carpete persa estendida no meio da sala. Ela toda ensanguentada e tremendo de medo olhava-me fixamente nos olhos. Tentou articular algumas palavras mas o que restara da língua estava inchado e inflamado dificultando a expressão de qualquer som. Puxei uma cadeira e sentei-me de frente a Clarice. Com a faca em mãos gravei seu nome em minha pele. Meu sangue misturou-se ao dela. ‘Te amo’, sussurrei em silêncio, apenas movendo os lábios. Ela sorriu. Foi a última vez que vi Clarice sorrindo.”

Ela não disse nada. Continuamos em silêncio até a parada de ônibus. Nossa conversa foi distante e superficial, e evitamos ao máximo falar sobre qualquer assunto sério ou pessoal.

O ônibus chegou.

Ela me beijou e embarcou.

Sem dizer adeus.

Eu fiquei lá, observando-a ir embora, sabendo que essa era a última vez que veria aqueles olhos castanhos que eu tanto amava – ao menos, foi no que acreditei. Meu coração batia forte no peito e eu sentia uma mistura de tristeza e alívio.

Três meses haviam se passado e na parada de ônibus, enquanto esperava o transporte coletivo para ir à faculdade, o vento frio após a chuva me envolvia, trazendo consigo uma sensação de melancolia. Panfletos e sacolas plásticas dançavam ao meu redor, criando uma sinfonia sutil de crac-crac sob os pés dos transeuntes (passantes?).

O ônibus ainda estava longe quando meu telefone celular tocou, rompendo o ritmo monótono daquele início de manhã. Olhei para a tela, e o nome que surgiu fez meu coração acelerar. Era Clarice.


As narrativas deste texto fazem um paralelo alegórico entre os eventos reais e seus significados. Um dos parágrafos, retratando uma cena violenta e um tanto quanto macabra, é uma alegoria a história narrada nos parágrafos anteriores. Tem por objetivo demonstrar como uma situação aparentemente comum pode ter em si, um significado violento para os envolvidos.

— Por Eruantano Alcarcalimo e seus outros alter egos

Da série “O Abismo Entre Nós”

set 2024

Uma fotografia. O coração dispara e no rosto, um sorriso em esboço. Enquanto a minh’alma baila, no embalo da canção que é a tua efígie.

Quem é ela? Aquela cujo olhar faz minh'alma brilhar, cujos lábios recitam poesias mesmo em silêncio. Ela é, pois, a presença que habita meus sonhos e traz consigo a brisa do desejo.

É noite, e mais uma vez me perco entre estas marés. Embriago-me na imensidão deste oceano castanho, nas joias enigmáticas que são teus olhos. E nesta imersão de sensações, desejos e memórias, relembro mais uma vez os momentos em que me agraciastes com tua presença.

A primeira vez que a vi, estava de mãos dadas com outra pessoa. Não dei muita importância e, na verdade, quase não a notei. Anos depois, lembrei-me, quando outra vez mais, a vi. Não tu em carne e osso, mas na tua etérea presença, através de uma fotografia. Não uma fotografia tua no sentido de capturar tua imagem, mas uma fotografia da qual foste a fotógrafa. Um ramo com várias flores carmesins, em contraste com a luz do sol. Esta imagem, quem me mostrou foi aquele alguém com quem estiveste de mãos dadas muitos anos atrás, quando a vi pela primeira vez. E através de tal fotografia, por ti, me apaixonei.

Levaram-se alguns anos até que eu conseguisse falar contigo, à distância, nas possibilidades de encontros que a grande rede nos oferece. Tudo começou com algumas “curtidas”, depois alguns comentários e, por fim, as conversas. Não lembro ao certo quando ou quem iniciou, mas, após centenas de mensagens trocadas, a vida — ou talvez o próprio destino — decidiu que deveríamos nos encontrar.

Nos encontramos em uma das estações da Avenida Anhanguera, no cruzamento com a Avenida Goiás, onde anos atrás havia uma praça, a Praça dos Bandeirantes. Lembro-me de caminhar ao lado da minha mãe, sob as copas das árvores que adornavam aquele lugar. Agora, restam apenas uma estátua que homenageia um momento da trágica história de nosso povo e a lembrança do nosso primeiro encontro.

Da calçada, a observei enquanto desembarcava na estação. Hoje, pensar nas palavras que possam descrever o que senti ao vê-la ali, a poucos metros de mim, é um árduo exercício.

Tu surgiste, como a imagem de um anjo — ou da concepção que podemos ter sobre um anjo — com teus cabelos bailando ao ritmo das brisas criadas pelos veículos que passavam. Teu sorriso, como uma pintura de Michelangelo, te envolvia em uma aura de divina serenidade e beleza. Tu acenavas à medida que, lentamente, te aproximavas. Teu “oi” foi como uma tempestade de gafanhotos que fervilhava em minhas entranhas. E naquele instante, eu te amei.

Fomos até um café anexo a uma livraria. Lembro-me de que tu escolheste um livro com poesias goianas, as quais dizias serem tuas favoritas, e desde então, as poesias do Planalto Central tornaram-se as minhas lembranças favoritas de ti. Pedimos algo para beber e conversamos; perguntei sobre ti, teus sonhos, teus interesses, desejos e temores. E tu me perguntaste sobre os meus.

As conversas na rede continuaram, e me lembro que um dia te chamei para ir comigo à capital buscar algo — acho que um presente, não me lembro ao certo. Tu foste de bom grado e, no caminho, dentro do ônibus, observando teus gestos ao falar, teu sorriso e o brilho no teu olhar, tive a certeza de que te amar era a mais sensata das escolhas. De lá, por um acaso intencional de ambas as partes, fomos para casa. Ficamos a tarde conversando, deitados um ao lado do outro, ouvindo Sinatra. Compondo uma canção para ti, no fim da tarde, quando o sol lentamente se ocultava entre as curvas da Serra das Areias, tu me perguntaste: “Sabe por que eu não te beijo?” Respondi negativamente, balançando a cabeça. Tu desviaste o olhar e, timidamente, me falaste teus motivos. Em resposta, eu apenas disse: “Se é o que tu desejas, faze.” Era 20 de outubro de 2018, um sábado. Nossos lábios se encontraram e, por breves instantes, nos fizemos um só.

Meu ser se tornou etéreo, fundindo-se a uma existência maior que o próprio universo: estrelas, supernovas e constelações, o farfalhar das folhas, o dançar das ondas do mar, os ventos cósmicos, as tempestades solares, a escuridão do vasto infinito. Fui e senti o todo e o nada. Naqueles instantes, tu, com tua fagulha divina, me fizeste sentir o sagrado e então descobri que deuses existiam, e tu eras a minha deusa.

Após o beijo, os encontros tornaram-se frequentes, e as trocas, intensas, como se o tempo se dissolvesse em cada toque. Teus lábios me devoravam com uma paixão voraz, enquanto tuas unhas me rasgavam suavemente. Os suspiros e gemidos se entrelaçavam no ar, e o calor do nosso corpo se fundia em um só, criando uma sinfonia de sensações. Teus braços me envolviam como um abrigo seguro, e tua presença aquecia minh'alma, como um sol radiante em um dia de inverno.

Teus olhares, profundos e penetrantes, vasculhavam os recônditos do meu ser, desnudando segredos que eu mal sabia que existiam. As cordas de sisal, os nós e as tranças entrelaçavam nosso prazer quase indissolúvel.

Recordo-me das vezes em que te visitei na faculdade, das caminhadas por entre os bosques, das pinturas que fiz em tua pele, e o anel que trancei com fibras de um cipó. Tu eras genuína, uma essência pura e vibrante; tu eras sincera; tu eras entrega e promessa. Mas, ao mesmo tempo, eras também angústia e medo, como sombras que dançavam à luz da nossa paixão.

Nossa paixão foi tão breve quanto as flores da primavera, cujas cores saturam-se lentamente ao iniciar do verão.

Um dia, tu me perguntaste por que ainda não nos havíamos juntado um ao outro – em carne e fluídos. Fiquei em silêncio, estagnando diante tua pergunta. Tu me confessaste que não querias que nos reduzíssemos a isso, que fôssemos mais do que carne, suor e gemidos. Era 23 de novembro de 2018 e, até hoje, não consigo entender completamente os motivos que te levaram a essa conversa. Apenas sei que, após dois dias de silêncio, tu escreveste o parágrafo final da nossa história.

Semanas depois, nos encontramos e conversamos. Como amigos, caminhamos juntos pelo bosque, sob a tênue luz do sol da manhã. Passamos aquele dia quase em total silêncio, imersos em uma cumplicidade que falava mais do que palavras poderiam expressar.

Era fim de tarde quando você, junto ao sol, desapareceu no horizonte. O crepúsculo de um sonho. Partiu. Sem nenhuma palavra. E após este fatídico dia tudo mais se fez silêncio.

Carrego comigo as lembranças de ti, do romance, da amizade e do companheirismo que perduraram, mesmo diante das tempestades. Também guardo as fotografias, e entre elas, há uma que é especialmente significativa.

Uma fotografia. O coração dispara e no rosto, um sorriso em esboço. Enquanto a minh’alma baila, no embalo da canção que é a tua efígie.

— Por Eruantano Alcarcalimo e seus outros alter egos

Da série “Memórias Invisíveis”

mar 2017

Meu corpo vibrou quando meus olhos se perderam nos teus. Em meio à multidão, foram os teus olhares que me encantaram, teus lábios, um feitiço que me aprisionou. Era a festa de São João, e, como um verso de uma cantiga antiga, a fogueira acendeu-se em meu coração.

Semanas se escoaram como o tempo em um sonho, até que um convite teu chegou e, entre noites de palavras sussurradas e segredos compartilhados, meu coração se rendeu à paixão.

Não foi surpresa, então, quando percebi que a paixão se transformava em algo mais profundo. O amor, como um visitante já esperado, bateu à porta, e sem hesitar, convidei-o a entrar.

Como poderia ser diferente? Como podias imaginar que eu não te amaria? Como poderia resistir a esses olhos castanhos, a essa pele dourada, ao sorriso que se formava em teus lábios? Teus gestos, tua voz, teus segredos, esperanças, medos e anseios, tudo em ti me envolvia como um manto de ternura. Como esperar que eu não te amasse após o brilho do teu sorriso? Muitas perguntas ecoam em minha mente, mas as respostas são poucas e distantes.

Hoje, você me diz para partir, para esquecer.

Como pode querer que eu apague da memória o instante em que escolhemos o nome de nossa filha? Como esquecer que, naquele momento, prometi que faria da minha vida a sua vida, que nunca te abandonaria, que te amaria enquanto houvesse um sopro de vida em meu ser? Como esquecer as noites em que discutimos os detalhes de como criaríamos nossa pequena? Como esquecer o dia em que a notícia da partida daquela criança tão esperada me despedaçou? Como esquecer as vezes em que você me disse que me amava, que estaria sempre ao meu lado? Como esquecer os momentos em que choramos juntos, os beijos de esquimó, os planos e promessas que trocamos? Como esquecer as canções que trocamos ao telefone, a emoção que nos envolveu quando te pedi em casamento? Como esquecer a alegria que transbordou quando você disse “sim”? Como esquecer o momento em que me entregou o anel e sussurrou “sempre serei a Coelhinha”? Como esquecer o cordão com a gota de vidro azul que me deste no meu aniversário? Como esquecer o coelho de pelúcia que se tornou símbolo de nosso amor? Como esquecer os poemas, as flores, as brigas que nos fortaleceram, as reconciliações que nos uniram, a amizade que nos sustentou, o carinho que nos envolveu, o amor que nos definiu? Como posso esquecer a Coelhinha, essa garota delicada, atenciosa, carinhosa, forte, inteligente, talentosa, cheia de sonhos e esperanças? Como, após tudo isso, você me pede para esquecer? Como posso seguir minha vida, se fiz dela a tua?

Meu corpo vibrou quando meus olhos encontraram os teus, e agora, neles, vejo apenas ódio e desprezo.

Minha alma se estilhaçou quando teus lábios se calaram, deixando um eco de dor em meu coração.

E assim, parti.

***

Post Scriptum (7 anos depois): Não te esqueci, como me pediste. Te trago aqui, comigo, na memória e na alma. Hoje, percebo que posso, sim, viver sem ti, e assim, vivo. Mas levo sempre comigo as lembranças de teus beijos e teu sorriso, teu gracejo e teu encanto. Sigo em paz, e vivo feliz. Contente, sabendo que também és feliz.

— Por Eruantano Alcarcalimo e seus outros alter egos

Da série “Memórias Invisíveis”

jul 2016

Para minha filhinha Ana Luna, que habita os sonhos mais profundos e ébrios do papai.

Esta seria a semana mais feliz.

Pela primeira vez, eu te pegaria nos braços e diria que te amo.

Você não imagina o quanto ensaiei este momento, quando finalmente uma parte de mim respiraria o mesmo ar que você. E mesmo em um mundo tão frio e cruel, eu te aqueceria e mostraria que há, sim, muito amor, bondade e paz. Te ensinaria a enxergar o melhor nas pessoas.

Imaginei diversas vezes como seria o seu sorriso, a sua gargalhada, enquanto juntos fôssemos flagrados rabiscando a parede da sala com giz de cera, e sua mãe nos repreendesse, dizendo que teríamos que limpar tudo.

Ensaiei o dia da sua primeira festinha na casa dos amiguinhos, a nossa primeira convenção de animes, filmes e quadrinhos, você lá, fantasiada de Princesa Léia, enquanto eu seria o Darth Vader.

Imagino também o nosso primeiro piquenique no parque, o primeiro pega-pega e pique-esconde. Iríamos pular corda, brincar de amarelinha, fazer bolhas de sabão e nos divertir com barro (para que sua mãe nos chamasse a atenção mais uma vez).

Antes de dormir, eu leria para você um bom livro: contos de Machado, poemas de Vinícius, clássicos infantis como “O Rapto das Cebolinhas”, “Pluft, O Fantasminha”, e obras como “O Hobbit”, “As Crônicas de Nárnia” e “As Viagens de Gulliver”.

Te ensinaria a apreciar a filosofia, a mergulhar nas ideias de Platão, Aristóteles, Kant, Nietzsche, Sartre, Bauman e muitos outros.

Imagino como seria o dia em que você conheceria seu primeiro namorado ou namorada, ou ambos.

De uma coisa eu tenho certeza: te ensinaria a ser uma mulher forte e independente. Até pagaria aulas de jiu-jitsu para que você pudesse se defender dos garotos da escola que ousassem te desrespeitar. Os babacas das baladas que se cuidassem.

Mas por que imaginar tão longe no tempo? Você ainda é um bebê.

Pense na expressão do papai ao trocar sua fralda pela primeira vez. E na cena em que, na cozinha, eu teria que olhar a mamadeira e a panela no fogão, enquanto te seguraria com um braço e tentaria abrir a lata de leite com a outra mão. Seria divertido, não seria?

Meu sorriso quando você balbuciasse pela primeira vez seria bobo, mas não mais bobo do que o meu sorriso quando você dissesse “papai” pela primeira vez.

São tantos momentos para imaginar: o primeiro “não”, os primeiros passos, o primeiro arranhão, a primeira queda de bicicleta, o primeiro palavrão. E eu estaria lá, sempre presente, não perderia um instante.

Esta seria a semana mais feliz, pois seria o início de tudo isso. Mas você não virá.

Saiba que papai te ama. E digo isso mesmo sabendo que você não pode me ouvir; escrevo estas palavras sabendo que você não poderá lê-las. No final das contas, você não existe. Mas, por um breve momento, você existiu para mim, quando papai acreditou que um dia você viria. E mesmo agora, sabendo que não virá, papai ainda te ama.

***

E esta carta termina assim, sem final, sem conclusão. Assim como a minha história de pai e filha, que permanece em aberto, cheia de possibilidades e sonhos não realizados. Uma narrativa que, embora inacabada, é repleta de amor e esperança.

— Por Eruantano Alcarcalimo e seus outros alter egos