Outras Coisas Mais

Sobre coisas e algumas outras coisas mais

Eram aqueles “olhos de jabuticaba”, que nem mesmo todas as constelações da Via Láctea juntas conseguiam competir em brilho e esplendor.

Sentado em uma desconfortável cadeira de madeira rústica, com uma garrafa – não um copo – na mão e o controle remoto do televisor na outra, assistia a algum programa de plateia idiota, daqueles tão comuns nos canais abertos que não acrescentavam nada de útil – salvo exceções – à minha vida cotidiana.

Ouvi o telefone tocar (por incrível que pareça, ainda há quem use telefone fixo residencial) e levantei-me para atendê-lo. Não consigo imaginar uma melhor maneira de descrever a sensação de levantar daquela cadeira após horas sentado e descendo goela abaixo intensos goles de rum. Primeiramente foi de alívio, como quando se passa antisséptico em uma arranhão e se descobre que ele não arde. Em seguida veio o formigamento e o molejo. Não sentia as pernas e mal conseguia movê-las para sair do lugar. Mas o pior foi quando a sala de estar girou ao meu redor de forma muito semelhante a quando se está em um daqueles carrosséis dos antigos parques de diversões itinerantes (e assim entrego a minha idade). Com muita dificuldade e com uma dor de cabeça tão horrível que parecia haver uma rinha de galos dentro do meu crânio, caminhei até o telefone, tirei-o do gancho e arrastei um “alô” tão longo quanto só um bêbado poderia fazê-lo. Mais tarde, encontrava-me à porta da casa de Ana Carla, com meus trêmulos e longos dedos finos oscilando entre tocar ou não a campainha.

Ela sorriu e estendeu os braços para me envolver com seu calor e perfume.

“Você chegou cedo, ainda não me arrumei”, ela disse. Sua voz me envolvia em uma nuvem mística de prazeres e desejos proibidos. Era música aos meus ouvidos e alimento para a alma.

Ana Carla sempre teve o péssimo hábito de se arrumar depois do horário marcado para nos encontrarmos e também em demorar um pouco mais que uma hora para se sentir satisfeita com a imagem que via refletida no espelho. Não havia alternativa a não ser esperar. E eu sabia, a espera valeria a pena.

Perambulei pela sala observando os quadros que emolduravam clássicos pôsteres da década de 50. Terror e ficção-científica eram seus gêneros prediletos, assim como os meus. 'Creature from the Black Lagoon', 'Invasion of the Body Snatchers', 'The Fly', 'The Blob', 'The Thing from Another World', 'Gojira' [...], 'The Alligator People', 'The Disembodied', 'Curse of the Demon', 'My World Dies Screaming' e tantos outros. Na estante, dezenas de livros entre prosas, poemas, novelas, romances e ensaios. Era um verdadeiro paraíso para um amante de literatura e cinema de terror como eu. Os enfeites luminosos de cristais, a poltrona de vime e um pequeno porta-retratos de tamanho de um cartão de crédito, onde se podia ver uma fotografia desbotada. Ana Carla usava um longo vestido florido e um chapéu de palha enquanto cavalgava um cavalinho daqueles de parque nos quais se inserem moedas para poder passar cinco minutos balançando para frente e para trás. Seu característico sorriso denunciava a felicidade que sentia com a pequena travessura. Fazia alguns anos que havia vendido a minha Lomo que usei para registrar esse saudoso momento. Um calafrio percorreu minha espinha ao ver que ela guardava a fotografia. Tive vontade de pular e dar cambalhotas, abrir a janela e descer livre por oito andares até abraçar a calçada de concreto lá embaixo. Esbocei um leve sorriso...

“Estou pronta”, ela disse. Me virei para vê-la.

***

E lá estava ela, linda e sublime, com seus longos e ondulados cabelos negros. Sua pele alva e aquele sorriso encantador digno de um 'da Vinci'. E claro, aqueles “olhos de jabuticaba” que nem mesmo todas as constelações da Via Láctea juntas eram capazes de competir em brilho e esplendor. Ela era uma escultura de Michelangelo, uma prosa de Cervantes, um romance de Assis. Era a garota que tantas vezes me agraciou com seu vislumbre na escola, a quem eu observava e absorvia com os olhos. Aquela garota alegre e agitada que dançava livre e desengonçada pelo pátio durante o recreio. Graciosa e atrevida, inteligente e gentil, agressiva quando necessário. Sempre usando camiseta preta, calça jeans desbotada e um 'Chuck Taylor All-Stars' surrado.

Meu coração acelerou, era como se em minhas veias, ao invés de sangue, corresse eletricidade. Era como se... Como se eu tivesse voltado no tempo naquele exato momento em que a vi pela primeira vez. Uma nuvem de gafanhotos me devorava de dentro para fora e enquanto me rasgavam para sair, eu era colocado em uma gigante máquina de costura industrial para evitar que os insetos escapassem.

“Obrigada, Roberto. Se não fosse por você, eu estaria muito ferrada”, ela disse.

“Vamos?”, perguntei.

Descemos os oito andares sem trocar palavras enquanto os alto-falantes do elevador insistiam em tocar uma música polifônica chiclete, que tenho certeza, levei semanas para esquecer. O motorista já nos esperava à frente do prédio. Entramos no carro e o motorista deu a partida.

***

Enquanto seguíamos em direção ao nosso destino, as luzes da cidade transpassavam pelo vidro e acariciavam as faces de Ana. Neste momento, eu já a chamava apenas de Ana, sempre com um sorriso de canto e a alma bailante. Ana, música e poesia. Estava chovendo naquela noite e os semáforos, outdoors, painéis de neon, fachadas de lojas, faróis e tantas outras luzes, projetavam esplêndidas esferas de luz coloridas que desenhavam e destacavam cada magnífica e maravilhosa pequena imperfeição do rosto perfeito de Ana. Um paradoxo no qual eu me deleitava em observar.

“Quer ouvir algo?”, ela perguntou. “Motorista? Posso sintonizar o rádio?” Era típico dela, perguntas sem expectativas de resposta, seu modo particular de dizer “vou fazer” ou “estou fazendo”.

Faço promessas malucas Tão curtas quanto um sonho bom Se eu te escondo a verdade, baby É pra te proteger da solidão

Faz parte do meu show Faz parte do meu show, meu amor

E prosseguimos assim, por todo o caminho. Cada um em seu lado do assento de passageiros, as luzes da cidade projetando sombras e exaltando a graciosidade de Ana, e um quase silêncio quebrado apenas pelo motor do carro, os sons da vida noturna em uma capital e as músicas de Cazuza no rádio.

“Foi bom estar com você, filho da puta”, ela disse enquanto repousava a cabeça pro sobre meu ombro. E outra vez mais, minha alma bailou ao som da música que emanava em cada palavra pronunciada por ela.

***

“Acorde! Chegamos.”, eu disse. Ana abriu os olhos lentamente e sorriu.

“Mas já? Acho que devíamos pedir ao motorista para dar uma volta em torno do quarteirão. Quero aproveitar um pouco mais”, disse em tom travesso.

Se eu pudesse, faria exatamente o que ela me pediu. Ainda mais eu, que nunca soube dizer não para ela. Mas aquela era outra situação.

“Vamos! Desça. Está atrasada”.

Ela se levantou, mas não sem esboçar uma expressão de descontentamento e dengo. Olhou para frente e depois para mim. Então, ela sorriu.

“Obrigada. Amo você.”, ela disse.

Eu fiquei ali, observando-a subir os degraus que a levariam à Catedral. Lá dentro, todos a esperavam.

***

Duas semanas depois, ainda com a música do elevador ecoando em minha cabeça, encontrei Ana em uma cafeteria da cidade. Não a havia visto e por isso ela pôde fazer uma de suas brincadeiras preferidas, chegar sorrateiramente por trás de alguém, cobrir-lhe os olhos com as mãos e perguntar “Quem é?”. Como se fosse possível não saber. Sua voz, sua música, sua poesia eram inconfundíveis.

Virei-me e esforcei um sorriso. E lá estava ela, a garota que tantas vezes me agraciou com seu vislumbre na escola, a quem eu observava e absorvia com os olhos. E enquanto sorria e gesticulava alegremente ao falar, meus olhos poderiam ter visto no seu anelar esquerdo o brilho de um diamante. Mas eles não viram. Meus olhos só conseguiam ver o sorriso e o olhar de Ana, aqueles lindos “olhos de jabuticaba”.

Inspirado no meu poema original **Jabuticabas**.

— Por Creme de Uva e seus outros alter egos


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Da série “Asterismos”

fev 2020

Naquela manhã enquanto apreciava meu café sem açúcar lembrei-me daquele sorriso e me descobri apaixonado.

A lua está linda esta noite, tão linda quanto a puta nua sob os lençóis em minha cama. Sarcasticamente perdoem-me o linguajar. Sei que seu puritanismo hipócrita lhe dá uma pontada nos rins nessas situações e, se me permite dizer, eu não ligo a mínima para seus falsos ideais sobre condutas e moral.

Voltemos à lua e a puta.

Gosto de ter esses momentos após uma noite de sexo casual e culposo, aquela exata categoria de sexo em que não há orgulho mas também não há remorso. Aconteceu, foi prazeroso durante o ato e só, depois não há mais nada. Ao menos tem sido assim durante muito tempo, mas não hoje. Hoje há algo diferente. O cigarro entre o indicador e o anular de minha mão esquerda queimou totalmente, as cinzas voam ao vento enquanto me perco nestes pensamentos. De fato essa noite não é como as outras, olhando aquele corpo nu cheio de curvas, com sua pele dourada e seus longos cabelos negros, eu me pergunto se estou feliz. E a resposta é um sonoro e claro “não”. “Estou infeliz? Não”. “Indiferente”, essa seria a palavra que melhor me descreve, mas também me sinto mórbido. “É possível ser mórbido e indiferente? Ambos na mesma frase e adjetivando o mesmo sujeito? Acho que sim.” Quase todas as noites bagunço os lençóis com uma companhia diferente. Meus dias e noites tem se resumido a festas, bares, destilados e cigarros de maconha. No fim termino com uma ou duas pessoas no quarto do meu pequeno apartamento na zona sul da cidade. Nunca tenho a intenção de procurá-las no dia seguinte, marcar um jantar ou ir ao cinema. Na maioria das vezes, nem mesmo sei seus nomes. Temos um acordo, antes do nascer do sol vista suas roupas e vá embora, sem despedidas.

Como a maioria dos homens dessa porcaria de cidade, eu sou um canalha. Não sei se decidi ser um ou se me transformaram em um como consequência de crescer sob a custódia ideológica desta sociedade medíocre. Seja eu um subproduto do patriarcado ou não, continuo sendo um perfeito canalha. Mas se permitem me defender, sou um canalha com escrúpulos, tenho uma conduta ética a seguir. Nunca iludi nenhuma das garotas e mulheres sobre quem sou ou minhas intenções. Se elas terminaram na minha cama é porque assim como eu, elas procuram desesperadamente preencher seu vazio com as futilidades efêmeras dos prazeres carnais. Ou talvez elas apenas quisessem um pouco de sexo sem compromisso, sem nenhuma tensão existencial para forçadamente justificar as ações realizadas por elas em uma sociedade onde tal conduta é sempre reprovada, embora louvada quando praticada por homens como eu.

Esta noite não foi diferente, não até este momento. Após algumas doses de bourbon e uns dois passos de tango ambos estávamos nos despindo mutualmente ainda no Hall de Entrada enquanto esperávamos pelo elevador. Creio não ser necessário detalhar o que sucedeu a tal cena, mas para deixar essa narrativa menos detestável ofereço um pouco de prosa:

“No silêncio frio da noite no sétimo ou talvez fosse o décimo sétimo beijo… Os olhos dela brilharam, como se todas as estrelas da galáxia ali estivessem. Era de um brilho esplendoroso, uma nuance de todas as cores fundidas em um branco de textura rústica e aroma de felicidade. Seus lábios vermelhos, pintados a batom — talvez tivessem sido desenhados a mão pelo próprio Da Vinci — sorriam destacando os aspectos que valorizavam cada elemento que compõe sua boca. As linhas curvas de seu corpo fundiam-se a uma idealização da realidade, subjetivando o mundo exterior e tornando-a um ideal sublime e encantador. Sua imagem presenteava-me com uma experimentação de sensações extremas, guiando-me a um paraíso artificial entre teus braços, perdido no labirinto de seus beijos, uma aventura vivenciada nos sentimentos supracitados…”

Após uma fervorosa noite de trocas de fluidos, gemidos, suspiros e gozadas, levantei-me e como de costume vim para a sacada saborear um Marlboro vermelho. Até então não havia me dado conto de que desta vez havia fugido ao roteiro. Foi apenas após a primeira tragada do segundo cigarro, olhando minha sombra projetada contra a parede do outro lado do quarto que meu dei conta do ocorrido.

“Vi nas sombras um tedioso eu sendo arrastado por uma pretensa poetisa barroca nas entrelinhas de poesias vazias apenas para no fim acabarmos sem roupa. Calorosos corpos nus sob lençóis, suados e entrelaçados, assinando com unhas na pele um do outro sua selvageria primitiva. Com beijos vermelhos selamos o implícito contrato de não fidelidade, pertencemos a nós mesmos e é só. No olhar entrecruzado gritamos e evidenciamos sem desespero a solidão que não nos abala. Ela então parte sem dizer adeus e isto me excita, não precisamos fingir cumplicidade. Não nos veremos mais e muito provável, não tornaremos a lembrar esta noite. Exceto talvez pelo poema que ela escreveu com os dentes sobre a superfície de meu corpo. Mas como tudo neste mundo ele irá desaparecer e junto qualquer lembrança e vestígio daquele fugaz romance noturno de primavera.”

Eu me percebi odiando este roteiro, não queria que terminasse assim, não desta vez. Na minha frente imagens aleatórias começaram a se projetar, imagens nítidas de pensamentos que jamais imaginei, eu um dia teria. Mãos dadas em um passeio pela praia, sorrisos durante um piquenique em um parque, crianças correndo e gritando no jardim de uma casa de campo.

Agora, a morbidez e a indiferença parecem se dissolver em misto de emoções ainda mais confusas e indescritíveis. Meu estômago se retorce, minha cabeça dói e mal consigo respirar. Caminho cambaleante até à cozinha e bebo água direto da torneira, espero um pouco para me recobrar e volto para o quarto. Ainda fico alguns minutos em pé diante a cama antes de me decidir por deitar. Fiquei ali pelos últimos minutos que restavam antes da hora dela partir.

“Por alguns instantes descuidei-me, e quando percebi, meus olhos encontravam-se com os dela. Lindos olhos brilhantes, como uma centena de estrelas. Ela sorriu. Um sorriso tímido, daqueles que pedem desculpas desnecessárias. Em resposta, sorri de volta, desviei o olhar e ela se levantou. Partiu sem dizer nenhuma palavra.”

Naquela manhã enquanto apreciava meu café sem açúcar lembrei-me daquele sorriso e me descobri apaixonado.

— Por Creme de Uva e seus outros alter egos


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Ontem, estive editando algumas fotografias. Entre elas, havia uma que tirei há alguns anos, de uma pessoa que sempre me cobrava para que eu a enviasse. Não éramos amigos íntimos, talvez apenas conhecidos; saímos e bebemos algumas vezes, fomos a duas ou três festas juntos, e ele sempre aparecia na praça de vez em quando. Frequentemente, nos cruzávamos no ônibus da linha 213.

Hoje, pela manhã, recebi a notícia: “Munição morreu.” “Munição”. Apesar do apelido bélico, Diego Felipe era um garoto tranquilo, sempre com um sorriso no rosto e cheio de planos e expectativas para a vida. Ele compartilhou alguns desses planos comigo entre goles de Cantina da Serra e piadas ruins. Agora, ele se tornou uma estatística de acidente de trânsito. Para os pais, sempre será um filho; para os amigos, uma memória. Para os conhecidos, uma vaga lembrança. Para mim, uma fotografia que nunca será entregue.

Seu corpo agora se decompõe, e os átomos que o formam irão nutrir a terra, os insetos e os vermes. E quem sabe, daqui a alguns bilhões de anos, esses mesmos átomos voltem a ser uma estrela, como já foram bilhões de anos atrás.

— Por Creme de Uva e seus outros alter egos


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Da série: Estórias inacabadas

“A liberdade é como grilhões em teus pés e a vida o oceano no qual estás a nadar”.

Eu estou no topo do mundo, e aqui, nenhum mal pode me alcançar. Sinto-me livre. Como se minha vida inteira tivesse sido passada em grilhões, com olhos vendados e boca amordaçada — o que, de certa forma, é verdade. E nestas condições, tudo o que eu sabia sobre o mundo era o que ouvia, principalmente, dos lábios de meus algozes. Mas um dia, de algum modo, me libertei e poderia conhecer a realidade com meus próprios olhos, mas a luz me feriu, e tudo o que eu via eram borrões em meio à intensa claridade. E mesmo depois de me acostumar com a luz ,ainda não podia ver verdadeiramente pois tudo o que me era apresentado era desconhecido, novo e incompreensível.

Eu estava livre, mas ainda assim, presa. Pois as correntes que me foram tiradas ainda permaneciam em minha alma. Era como uma criança pequena em meio à multidão de um parque de diversões, cujos pais se distanciaram para fazer algo e disseram-lhe “não saia daí”. Tinha um universo à minha frente, mas não podia explorá-lo.

***

Uma brisa suave toca meu rosto, trazendo lembranças e boas sensações, como quando era criança e meu avô me pegava no colo para ensinar sobre a vida e a morte, sobre amor e ódio, alegria e tristeza, conquistas e sacrifícios. A sensação é a mesma de quando colocamos um torrão de açúcar na boca após experimentarmos o sabor amargo da decepção.

Aqui em cima, eu sou deusa de minha própria existência. Olho para baixo, lá, as pessoas parecem formigas e os veículos automotores são como pequenos besouros. Os passos apressados das pessoas abaixo parecem um fluxo constante, como as ondas de um oceano. Elas se movimentam sem parar, como se estivessem correndo contra o tempo.Cada um carregando sua própria carga de preocupações e problemas. Elas parecem lamentar suas vidas, como se estivessem insatisfeitas com o caminho que escolheram. E eu me sinto conectada a elas, pois minha vida também já foi assim. Mas agora, aqui em cima, tudo é diferente.

Aqui em cima, eu me sinto livre. Livre da dor, da angústia e do ódio que antes me consumiam. É como estar em uma roda gigante suspensa no ar, durante uma chuva de verão. O vento sopra em meus cabelos e a chuva fria me refresca. Eu me sinto como se estivesse bebendo o arco-íris e comendo pãezinhos de mel recheados de infância. Tudo é perfeito e eu sou a rainha deste mundo.

Eu ergo meu olhar para o alto, contemplando o vasto céu noturno. A lua brilha intensamente, cravando seus raios prateados nas estrelas dispersas no firmamento. Mas minha atenção se volta para além daquela vista, para um lugar que reside dentro de mim. Um lugar onde sou livre para ser quem eu quiser, sem me preocupar com as opiniões alheias. É um espaço íntimo e pessoal, que me pertence somente.

Fecho os olhos para sentir a brisa fresca beijando minha face. Eu sinto a sensação de paz e gratidão me invadir. E por um breve instante sinto a dúvida me invadir. É a morte que eu busco? Eu sei que alguns desejam isso para mim, mas eu devo permitir que eles tenham a satisfação de me ver desistir? Estou hesitante. Dou um passo para trás, decidida a descer os degraus e voltar para casa onde posso desfrutar de uma xícara de café forte. Mas, infelizmente ou felizmente, meus pés vacilam e escorregam. Meu corpo se inclina para a frente e sinto o desequilíbrio me consumir.

***

Eu poderia escolher lutar, lutar para me segurar e viver, mas eu escolho deixar-me cair. Escolho deixar-me ser levada pelo vento, escolho me libertar das correntes que ainda me prendiam.

***

Eu abro meus olhos e vejo a vida passando por mim, a vida que eu sempre quis viver. Eu vejo os sorrisos, as lágrimas, a dor e a alegria. Eu vejo tudo o que eu perdi, mas também tudo o que eu ganhei. Eu vejo minha história. Eu vejo a minha liberdade.

Eu estou caindo livre, sem amarras, sem medo. A sensação é indescritível, é como se todas as minhas emoções estivessem à flor da pele. Sinto o vento soprando com força em meus cabelos, o coração acelerado, o medo e a euforia misturando-se em minha mente.

A velocidade aumenta e o chão se aproxima cada vez mais.

Eu estou livre, finalmente livre. Eu estou onde sempre quis estar, mas desta vez, eu não estou só. Eu estou cercada pela lembrança de todas as pessoas que amo, por todas as coisas que me fazem feliz.

Eu estou caindo livre, mas eu nunca estive tão segura.

Eu estou caindo livre, mas eu nunca estive tão viva.

Fecho os olhos e sorrio. Um sorriso triste de aceitação.


Publicado originalmente em 28 de dezembro de 2017 sob o título “Queda Livre”

— Por Creme de Uva e seus outros alter egos


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Ser solteiro possui singularidades que, em certa medida, trazem até mesmo algumas vantagens, como se tornar um “chef francês de cozinha sofisticada”. Quanto à palavra “gourmet”, tenho certo ressentimento porque, em sua essência, significa alguém que dedicou-se a explorar as nuances dos sabores, desenvolvendo um paladar refinado e único. Infelizmente, tornou-se moda e agora é difícil encontrar um biscoito ou sorvete que não seja cobrado o dobro, ou até mesmo o triplo, simplesmente porque é considerado “gourmet”.

Voltemos à vida de solteiro. Em uma noite de fome, depois de horas evitando a louça, finalmente se rende e prepara o prato mais tradicional da vida solteira: aquela refeição cujo sabor é potencializado com a água quente do chuveiro, já que o gás acabou no mês anterior. Corta tomates e cebolas, picoteia salsinha, adiciona alhos amassados com ajuda de uma colher e, claro, não pode faltar a malagueta. O aroma envolve o pequeno espaço de 30 metros quadrados, que já foi o maior loft que conseguiu alugar com o salário de estagiário. Antes de desfrutar do sabor maduro e picante, é necessário tirar uma foto para compartilhar nas redes sociais, pois mais importante do que a comida em si, são as curtidas.

Escrevi este texto seguindo uma corrente/thread nas redes socais – não sei qual – sobre a qual uma amiga havia mencionado comigo.

— Por Creme de Uva e seus outros alter egos


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Da série “Flores de Vidro”

mar 2022

Eu poderia tê-la abraçado e dito que estava tudo bem. Que poderíamos, juntos, passar por tudo aquilo. Mas o sadismo prevaleceu.

Ela me olhava como se eu fosse a imagem imaculada do redentor. Com aquela ânsia por perdão que aflige tanto aos rigorosos devotos sacros. Suas lágrimas corriam como rios, levando consigo os pigmentos da maquilagem e criando com eles formas bizarras e disformes por sobre teu rosto. Era como um rito de expiação, a lavagem da alma em busca de redenção. Era eu, seu Cristo, e ela, Maria Madalena.

Mas como posso eu, homem pecador, carregado de chagas e profeta da abominação, ser aquele quem a irá salvar?

— Só tu podes salvar a si mesma.

Não havia nada de novo no que eu disse. Uma frase clichê de um drama qualquer.

Ela me encarou como se quisesse com os olhos, arrancar-me a língua. Senti aquele músculo se desprendendo de minha garganta, arrebentando fio a fio. A cada estalo um grunhido. Me afogando em meu próprio sangue enquanto agonizava silenciosamente mergulhado em dor.

— Me desculpe, ela disse.

A voz embargada em prantos de angústia mal conseguiram articular aquelas palavras que saíram mais como sussurros.

Eu, com o olhar inquisidor, debruçava violentamente meus verbos por sobre ela. Minhas palavras eram calmas e suaves. Mas incisivas. Tão precisas quanto o corte de um bisturi nas mãos de um hábil cirurgião. Gesticulava no ritmo em que as palavras iam emergindo. Fazia questão de trazer nelas o peso dos pecados cometidos e que ali, estavam sendo expiados. Era eu, Cristo aos teus olhos, mas na verdade, enquanto falava, em meus pensamentos era eu, o carrasco que o pregou na cruz. E gostava daquilo. A sensação de poder, de controle. O destino de uma vida em minhas mãos.

Poderia eu ter trilhado outros caminhos? Ter usado outras palavras? Sim, poderia. Imaginava no momento, todas as outras possíveis formas de conduzir aquela conversa. Mais humanas, empáticas, acolhedoras. Mas eu tinha que a fazer sofrer. Precisava que ela sentisse a dor que eu senti, a dor que ela me causou. Não era uma conversa de compreensão e resolução. Era uma vingança articulada, roteirizada. Cada palavra, cada gesto tinham sido meticulosamente delineados. Haviam verdades no que eu dizia, havia sentido. Eram postulações válidas, pontos de vistas coerentes. Mas o modo, o meio e os objetivos eram sádicos e cruéis.

Era ela, Maria Madalena, e eu, mais um dentre todos aqueles que a apedrejavam.

***

Publicado originalmente sob o título “Madalena”.

— Por Creme de Uva e seus outros alter egos


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