Sobre Pedras & Perdão
Da série “Flores de Vidro”
mar 2022
Eu poderia tê-la abraçado e dito que estava tudo bem. Que poderíamos, juntos, passar por tudo aquilo. Mas o sadismo prevaleceu.
Ela me olhava como se eu fosse a imagem imaculada do redentor. Com aquela ânsia por perdão que aflige tanto aos rigorosos devotos sacros. Suas lágrimas corriam como rios, levando consigo os pigmentos da maquilagem e criando com eles formas bizarras e disformes por sobre teu rosto. Era como um rito de expiação, a lavagem da alma em busca de redenção. Era eu, seu Cristo, e ela, Maria Madalena.
Mas como posso eu, homem pecador, carregado de chagas e profeta da abominação, ser aquele quem a irá salvar?
— Só tu podes salvar a si mesma.
Não havia nada de novo no que eu disse. Uma frase clichê de um drama qualquer.
Ela me encarou como se quisesse com os olhos, arrancar-me a língua. Senti aquele músculo se desprendendo de minha garganta, arrebentando fio a fio. A cada estalo um grunhido. Me afogando em meu próprio sangue enquanto agonizava silenciosamente mergulhado em dor.
— Me desculpe, ela disse.
A voz embargada em prantos de angústia mal conseguiram articular aquelas palavras que saíram mais como sussurros.
Eu, com o olhar inquisidor, debruçava violentamente meus verbos por sobre ela. Minhas palavras eram calmas e suaves. Mas incisivas. Tão precisas quanto o corte de um bisturi nas mãos de um hábil cirurgião. Gesticulava no ritmo em que as palavras iam emergindo. Fazia questão de trazer nelas o peso dos pecados cometidos e que ali, estavam sendo expiados. Era eu, Cristo aos teus olhos, mas na verdade, enquanto falava, em meus pensamentos era eu, o carrasco que o pregou na cruz. E gostava daquilo. A sensação de poder, de controle. O destino de uma vida em minhas mãos.
Poderia eu ter trilhado outros caminhos? Ter usado outras palavras? Sim, poderia. Imaginava no momento, todas as outras possíveis formas de conduzir aquela conversa. Mais humanas, empáticas, acolhedoras. Mas eu tinha que a fazer sofrer. Precisava que ela sentisse a dor que eu senti, a dor que ela me causou. Não era uma conversa de compreensão e resolução. Era uma vingança articulada, roteirizada. Cada palavra, cada gesto tinham sido meticulosamente delineados. Haviam verdades no que eu dizia, havia sentido. Eram postulações válidas, pontos de vistas coerentes. Mas o modo, o meio e os objetivos eram sádicos e cruéis.
Era ela, Maria Madalena, e eu, mais um dentre todos aqueles que a apedrejavam.
Publicado originalmente em minha antiga conta (excluída) no Medium sob o título “Madalena” e inspirado no fim de um relacionamento.
— Por Creme de Uva e seus outros alter egos