Rabiscos e Rascunhos

Um lugar onde posso publicar anonimamente textos estranhos e ruins que rabisco pelos cantos.

Da série: Estórias inacabadas

“A liberdade é como grilhões em teus pés e a vida o oceano no qual estás a nadar”.

Eu estou no topo do mundo, e aqui, nenhum mal pode me alcançar. Sinto-me livre. Como se minha vida inteira tivesse sido passada em grilhões, com olhos vendados e boca amordaçada — o que, de certa forma, é verdade. E nestas condições, tudo o que eu sabia sobre o mundo era o que ouvia, principalmente, dos lábios de meus algozes. Mas um dia, de algum modo, me libertei e poderia conhecer a realidade com meus próprios olhos, mas a luz me feriu, e tudo o que eu via eram borrões em meio à intensa claridade. E mesmo depois de me acostumar com a luz ,ainda não podia ver verdadeiramente pois tudo o que me era apresentado era desconhecido, novo e incompreensível.

Eu estava livre, mas ainda assim, presa. Pois as correntes que me foram tiradas ainda permaneciam em minha alma. Era como uma criança pequena em meio à multidão de um parque de diversões, cujos pais se distanciaram para fazer algo e disseram-lhe “não saia daí”. Tinha um universo à minha frente, mas não podia explorá-lo.

***

Uma brisa suave toca meu rosto, trazendo lembranças e boas sensações, como quando era criança e meu avô me pegava no colo para ensinar sobre a vida e a morte, sobre amor e ódio, alegria e tristeza, conquistas e sacrifícios. A sensação é a mesma de quando colocamos um torrão de açúcar na boca após experimentarmos o sabor amargo da decepção.

Aqui em cima, eu sou deusa de minha própria existência. Olho para baixo, lá, as pessoas parecem formigas e os veículos automotores são como pequenos besouros. Os passos apressados das pessoas abaixo parecem um fluxo constante, como as ondas de um oceano. Elas se movimentam sem parar, como se estivessem correndo contra o tempo.Cada um carregando sua própria carga de preocupações e problemas. Elas parecem lamentar suas vidas, como se estivessem insatisfeitas com o caminho que escolheram. E eu me sinto conectada a elas, pois minha vida também já foi assim. Mas agora, aqui em cima, tudo é diferente.

Aqui em cima, eu me sinto livre. Livre da dor, da angústia e do ódio que antes me consumiam. É como estar em uma roda gigante suspensa no ar, durante uma chuva de verão. O vento sopra em meus cabelos e a chuva fria me refresca. Eu me sinto como se estivesse bebendo o arco-íris e comendo pãezinhos de mel recheados de infância. Tudo é perfeito e eu sou a rainha deste mundo.

Eu ergo meu olhar para o alto, contemplando o vasto céu noturno. A lua brilha intensamente, cravando seus raios prateados nas estrelas dispersas no firmamento. Mas minha atenção se volta para além daquela vista, para um lugar que reside dentro de mim. Um lugar onde sou livre para ser quem eu quiser, sem me preocupar com as opiniões alheias. É um espaço íntimo e pessoal, que me pertence somente.

Fecho os olhos para sentir a brisa fresca beijando minha face. Eu sinto a sensação de paz e gratidão me invadir. E por um breve instante sinto a dúvida me invadir. É a morte que eu busco? Eu sei que alguns desejam isso para mim, mas eu devo permitir que eles tenham a satisfação de me ver desistir? Estou hesitante. Dou um passo para trás, decidida a descer os degraus e voltar para casa onde posso desfrutar de uma xícara de café forte. Mas, infelizmente ou felizmente, meus pés vacilam e escorregam. Meu corpo se inclina para a frente e sinto o desequilíbrio me consumir.

***

Eu poderia escolher lutar, lutar para me segurar e viver, mas eu escolho deixar-me cair. Escolho deixar-me ser levada pelo vento, escolho me libertar das correntes que ainda me prendiam.

***

Eu abro meus olhos e vejo a vida passando por mim, a vida que eu sempre quis viver. Eu vejo os sorrisos, as lágrimas, a dor e a alegria. Eu vejo tudo o que eu perdi, mas também tudo o que eu ganhei. Eu vejo minha história. Eu vejo a minha liberdade.

Eu estou caindo livre, sem amarras, sem medo. A sensação é indescritível, é como se todas as minhas emoções estivessem à flor da pele. Sinto o vento soprando com força em meus cabelos, o coração acelerado, o medo e a euforia misturando-se em minha mente.

A velocidade aumenta e o chão se aproxima cada vez mais.

Eu estou livre, finalmente livre. Eu estou onde sempre quis estar, mas desta vez, eu não estou só. Eu estou cercada pela lembrança de todas as pessoas que amo, por todas as coisas que me fazem feliz.

Eu estou caindo livre, mas eu nunca estive tão segura.

Eu estou caindo livre, mas eu nunca estive tão viva.

Fecho os olhos e sorrio. Um sorriso triste de aceitação.

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Publicado originalmente em 28 de dezembro de 2017

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O ar era pesado e trazia consigo um odor ocre e azedo, tão forte que parecia corroer as narinas. A atmosfera ao redor parecia apodrecer, como se algo terrível tivesse se alojado naquele lugar. Ela levou a mão à boca, com uma ânsia de vômito, enquanto buscava apoio em uma das árvores tortuosas.

— Você está bem? – perguntei, caminhando em sua direção para ajudá-la. — Tome isso, irá fazer com que se sinta melhor.

Ela pegou o frasco e abriu-o, sem hesitação, ingerindo todo o seu conteúdo. O líquido desceu por sua garganta, aliviando sua sensação de náusea. Ela limpou os lábios com as costas das mãos e olhou para mim.

— O que é isso? – perguntou ela, ainda um pouco zonza.

— É seiva de Arcate, usada para encantamentos de conjuração, mas também é ótima contra enjoos e ressaca.

Ela parecia não dar muita atenção à explicação. Seus olhos estavam fixos nas copas das árvores, que se entrelaçavam acima de nossas cabeças, criando uma cobertura densa e impenetrável.

Com um sinal de silêncio, ela colocou o indicador sobre os lábios e se moveu com uma graça felina em direção a uma gameleira antiga. Apontou para os galhos da árvore e eu olhei na direção em que ela apontava, mas não vi nada de anormal. Ela olhou para mim com um olhar sério e preocupado.

— Eles nos observam. Melhor voltarmos antes que decidam nos abordar.

Ela começou a andar para trás, tão cautelosa quanto avançara segundos antes. Porém, dessa vez não teve tanta sorte e pisou em um graveto seco, quebrando-o com um estalido estridente.

— Corra! – ela gritou, transformando-se em um anu-preto e voando para longe.

Olhei para cima e vi uma silhueta humanoide avançando rapidamente pelas copas das árvores em nossa direção. Sem hesitar, comecei a correr em direção à saída da floresta, sentindo a adrenalina correndo por minhas veias. O barulho de galhos quebrando e folhas sendo pisadas podia ser ouvido atrás de mim enquanto corria pela floresta densa e escura, lutando contra a sensação de que algo terrível estava me perseguindo.

A voz de Caijara ecoou em minha mente, pedindo para que eu não olhasse para trás, apenas corresse. Eu não gostava da sensação de ter meus pensamentos invadidos por outra pessoa, mas eu sabia que não havia tempo para discutir sobre isso. O medo me consumia e a única coisa que eu conseguia pensar era em fugir.

Com o coração batendo descompassadamente, comecei a correr em direção ao desfiladeiro. A floresta parecia ficar cada vez mais densa e escura, como se estivesse se fechando em torno de mim. Ainda podia sentir a presença da criatura atrás de mim, seus passos pesados e desajeitados ressoando na floresta. Finalmente, avistei a borda do desfiladeiro e, sem hesitar, pulei. O ar fresco bateu em meu rosto enquanto eu caía, e eu podia sentir o som do rio abaixo ficando cada vez mais alto. Quando finalmente toquei a água, senti meu corpo afundando momentaneamente antes de emergir novamente. Olhei em volta, procurando por minha mestra.

Ela estava ali, em pé na margem do rio, com um sorriso triunfante no rosto. Senti um alívio imenso ao vê-la, sabendo que estava a salvo. No entanto, não pude deixar de sentir uma pontada de curiosidade sobre a criatura que nos perseguia. Mas eu sabia melhor do que perguntar a Caijara sobre isso. Ela não fugiria assim tão facilmente de algo que pudesse derrotar.

  • * *

Caijara estendeu a mão em minha direção, um sorriso brincalhão nos lábios.

— Nunca vi um Aldeano correr tão rápido. O medo deveria ser um esporte. Assim, pelo menos teríamos uma taça nos Jogos de Antares. — Ela me provocou, tentando aliviar a tensão do momento.

— Muito engraçado, Caijara. Mas eu corri porque você me disse para fazer isso. E não sou idiota o suficiente para querer enfrentar algo que até mesmo você evita.

Ela explicou que aquele ser era um Primal, uma criatura que ela poderia derrotar sozinha, mas que costumavam andar em bandos. — Não estou disposta a descobrir quantos deles sou capaz de enfrentar antes de ser rasgada ao meio e servir de refeição para um bebê peludo e selvagem — disse, com uma expressão séria que denotava cautela e experiência.

— Mas eles não são apenas lendas?

— Irá descobrir, jovem, que deste lado do Vale de Ossos as lendas são tão reais quanto o seu medo. — sua voz era firme, transmitindo uma certeza que me arrepiava.

“E acredite, há terrores maiores do que um simples macaco gigante por aqui”, sussurrou novamente em meus pensamentos, como se quisesse alertar-me para os perigos desconhecidos à nossa frente.

— Eu odeio quando faz isso. — exclamei em voz alta, irritado e admirado com sua habilidade de invadir minha mente.

“Eu sei disso”, sussurrou Caijara, sorrindo enquanto se afastava. “Agora, precisamos encontrar outro caminho para chegar ao outro lado da floresta.” Senti uma mistura de medo e curiosidade ao seguir seus passos, ciente de que essa jornada estava longe de ser tranquila. O desconhecido nos aguardava, repleto de segredos e ameaças ocultas.

  • * *

Estabelecemos nosso acampamento nas margens do rio, um local estratégico onde suas águas calmas encontravam-se com as do majestoso afluente que fluía à nossa frente. Era um espetáculo da natureza, um encontro de forças fluídicas que se entrelaçavam em perfeita harmonia. Caijara, sábia e enigmática, compartilhou seus conhecimentos com um entusiasmo contagiante, enquanto contemplávamos a grandiosidade daquelas águas em movimento. Ela me revelou que aquele modesto rio que diante de nós serpenteava, abria seu caminho em direção ao horizonte, até desaguar no vasto oceano ao leste. Uma jornada épica, alimentada pela união de inúmeros afluentes e riachos que lhe conferiam poder e magnitude. Ao mencionar a grandiosidade que se revelava quando encontrava o mar, os olhos de Caijara se iluminavam com um brilho intenso, refletindo o fascínio e a devoção que ela nutria pela magnitude da criação natural.

Caijara era uma xamã do Conclave, uma figura enigmática e sábia que caminhava pelos bosques com um ar de mistério. Suas vestes, tecidas com as mais finas fibras naturais, eram um verdadeiro tributo à natureza. O manto, adornado com delicadas folhas entrelaçadas, parecia ter sido tecido pelos próprios espíritos da floresta. Cada fio era uma reverência aos elementos: o verde intenso simbolizava a vitalidade da terra, enquanto os toques dourados representavam o poder radiante do sol. Os punhos do manto eram enfeitados com sinos de prata, que emitiam um suave tilintar a cada passo seu, como se as melodias da natureza a seguissem em sua jornada. Por baixo do manto, ela vestia uma túnica feita de linho, tecida por suas próprias mãos. As cores terrosas se mesclavam harmoniosamente, evocando as tonalidades das folhas outonais. Bordados intrincados retratavam a vida florescente das florestas, desde os menores cogumelos até as majestosas árvores antigas. Cada ponto era uma oração à vida que pulsava ao seu redor, uma conexão profunda com os ciclos eternos da natureza. Enquanto caminhava, Caijara exibia uma postura imponente, digna de uma guardiã da sabedoria ancestral. Seus passos eram firmes e graciosos, como se ela estivesse em perfeita sintonia com a terra sob seus pés. Seu olhar penetrante, de um verde tão profundo quanto as folhas mais escuras da floresta, revelava uma alma que absorvera toda a energia vital ao seu redor. Era como se cada árvore, cada riacho e cada criatura silvestre confiassem nela seus segredos mais íntimos.

Aquela mulher era minha mestra, a quem dediquei minha vida para absorver seus ensinamentos. Ela representava a última guardiã de uma tradição milenar, e dizia que a mim cabia a continuidade desse legado. No entanto, eu me sentia indigno desse fardo. Um jovem aleijado que havia perdido seu braço direito durante um ataque de guarás quando ainda era um bebê nos braços. Meus pais lutaram e sacrificaram suas próprias vidas para me salvar, mas não antes que eu perdesse parte de mim. Embora eles tenham derrotado as feras, as feridas da batalha os levaram em seguida. Foi então que Caijara me encontrou, sob o manto congelado da noite, durante uma lua cheia, abrigado sob a majestosa sombra de um jequitibá. Ela me chamou de Arubarjai, nome que, segundo ela, representava o espírito de luta que a vida me concedeu. Ela me criou, me alimentou, me ensinou a caminhar, a decifrar os segredos da floresta e a escrever nas brisas que passavam. Enquanto a observava, uma dor insidiosa invadia minha alma, corroendo-me por dentro, fazendo com que minha respiração pesada parecesse rasgar-me o peito. Desejava que as circunstâncias fossem diferentes, que eu pudesse evitar o que estava por vir. Mas era inevitável. Ela me deu a vida e a sua eu iria tomá-la. Ouvi meu nome ser chamado.

— Arubarjai, você está me ouvindo? Seguiremos pelos caminhos à nossa frente. Estenderemos nossa jornada por mais um dia, mas evitaremos o território dos primais e chegaremos ao Descampo em segurança.

Assenti silenciosamente, ciente de que o silêncio era necessário para que minha voz não entregasse a verdade por trás das minhas intenções, revelando-as em seu trêmulo timbre. Sugeri a Caijara que descansasse, assumindo o primeiro turno de vigília. Ela concordou prontamente, e o peso da confiança que depositava em mim fez com que minhas dúvidas se tornassem mais intensas, inundando meu coração de pesar. Contudo, minha determinação não vacilava; por mais que me lamentasse, cumpriria essa missão. Eu precisava dominar o poder ancestral e Caijara ainda tinha séculos de vida pela frente, antes de sentir o chamado da Mãe e passar-me o cajado. Para conquistar esse poder, eu teria que tomá-lo pela força.

  • * *

Conforme previsto por Caijara, conseguimos chegar ao nosso destino com segurança, e o atraso de um dia não afetaria o ritual. A lua vermelha surgiria em dois dias, portanto tínhamos tempo suficiente para nos prepararmos. O Descampo, um cenário imponente, revelava-se à nossa frente. Tratava-se de um lajeado de pedras lisas e escuras, situado no topo de um platô no coração mais profundo da antiga floresta. Aquele local era sagrado para os xamãs do Conclave, um ponto onde, por milênios, gerações de jovens curumins passaram pelo rito de passagem para se tornarem Emissários da Mãe. Durante doze anos, eu havia seguido e escutado os ensinamentos de Caijara, e agora ela se orgulhava de ver seu pequeno aprendiz se tornar um homem. Contudo, eu sabia que seriam necessárias décadas de dedicação para que eu pudesse alcançar maior elevação espiritual. O título de xamã seria concedido somente quando Caijara passasse o cajado, algo que ela só faria quando se unisse ao mundo dos espíritos.

O Descampo era um lugar envolto em uma aura mística. As pedras antigas, desgastadas pelo tempo e marcadas pelas pisadas dos xamãs que vieram antes de mim, emanavam uma energia ancestral. A atmosfera carregada inspirava respeito e reverência, pois ali, entre aquelas rochas sagradas, a sabedoria e o poder da natureza se encontravam. Enquanto contemplávamos aquele cenário, eu sentia uma mistura de emoções dentro de mim – antecipação, ansiedade e uma angustia profunda perante o desafio que me aguardava.

Fui abruptamente arrancado de meus pensamentos por um silvo profundo e agudo, ecoando entre as colunas de pedra que circundavam o Descampo como uma floresta petrificada. Era o chamado de Caijara, o início do ritual. O primeiro passo consistia em abrir o portal dos espíritos, algo que até mesmo uma xamã tão poderosa como ela não conseguia fazer sozinha. Era necessário que os próprios espíritos, habitantes deste plano, fornecessem a energia necessária para forjar a Chave da Alma. O silvo prolongava-se, alternando tons e ritmos, tecendo uma melodia triste e bela. Era acompanhado por gestos e passos singulares, uma dança que Caijara afirmou ser única para cada xamã. Dessa forma, ela se conectava com os seres ancestrais que habitavam essas terras muito antes da Mãe, a deusa da criação, trazer os seres humanos a este mundo.

Observando aquela dança primal, meus pensamentos mergulhavam nas profundezas de minhas memórias, revivendo os momentos marcantes da minha infância ao lado de Caijara. Lembranças preciosas que me fizeram compreender a importância dessa jornada e a magnitude do legado que estava prestes a abrir mão. Através dos gestos harmoniosos de Caijara, eu sentia a presença daqueles que vieram antes de nós, aqueles que trilharam o caminho da sabedoria ancestral e deixaram sua marca indelével no tecido da existência e eles pareciam saber o que eu tramava no âmago de meu ser. Meu estômago retorcia-se e as entranhas pareciam ferver dentro de mim. Afastei-me do Descampo, em busca de refúgio entre as imponentes colunas de pedra. Encontrei abrigo em uma gruta, escondida nas galerias formadas ali, e dei início aos preparativos para meu ataque. Sabia que Caijara não sucumbiria facilmente diante de mim, um aprendiz frágil e marcado pela deficiência. Por isso, sentia-me compelido a recorrer a forças obscuras, em busca de um poder além do meu alcance. Naquele espaço sombrio, rodeado pelas sombras dançantes, senti uma energia densa e sinistra permeando o ar. Os segredos proibidos da escuridão sussurravam em meus ouvidos, seduzindo-me com promessas de poder e vitória. Cada batida acelerada do meu coração ecoava nas paredes úmidas da gruta, como se o próprio espaço se agitasse em antecipação ao que estava por vir.

Enquanto me preparava, uma mistura de culpa e determinação enchia meu ser. Eu sabia que aquilo ia contra tudo o que Caijara me ensinara, contra os princípios sagrados que regiam a nossa jornada. Mas, impulsionado pela sombra da minha própria insuficiência, eu me convenci de que era a única forma de alcançar o poder necessário para mudar meu destino. A escuridão da gruta parecia se solidificar ao meu redor, envolvendo-me em seu abraço frio e opressor. Eu estava prestes a desafiar a ordem natural das coisas, a adentrar um reino desconhecido e perigoso. Contudo, a voz de Caijara ecoava em minha mente, como um eco distante da sabedoria que ela me transmitira ao longo dos anos. E aquela lembrança me trazia tanto conforto quanto angústia, pois eu sabia que estava prestes a trair a confiança e os ensinamentos da única pessoa que me amara e acreditara em mim. Respirei fundo, absorvendo a escuridão que me rodeava, e me preparei para mergulhar nas sombras em busca do poder que ansiava. Eu estava disposto a pagar o preço necessário para alcançar meu objetivo, mesmo que isso significasse enfrentar as profundezas mais obscuras e desconhecidas.

“Arubarjai?” A voz de Caijara ressoou em meus pensamentos. Sentia-me aliviado ao lembrar que, embora pudesse me comunicar telepaticamente com ela, meus pensamentos permaneciam ocultos. “Arubarjai?”, ela chamou novamente. “Onde você está? Estou preocupada. Não percebi quando partiu. Já forjei a Chave da Alma e agora preciso de sua ajuda para iniciar a abertura do portão.”

Ergui-me e caminhei em direção ao Descampado, onde minha mestra aguardava por mim, alheia ao fato de que o destino que ela havia planejado para mim já não se cumpriria. Em seu desconhecimento, sua própria vida chegaria ao fim pelas mãos daquele a quem ela havia dado a vida.

  • * *

Por dois dias inteiros, Caijara e eu mergulhamos em uma jornada intensa de preparação para o iminente rito de passagem. Após sua dança primal, onde ela forjou a Chave da Alma com fúria e determinação, iniciamos o ritual de purificação. Cuidadosamente colhemos a sagrada raiz da ayahuasca, sentindo sua textura áspera e perfumada sob nossos toques reverentes. Preparamos um chá que emanava um aroma terroso e místico, cientes de que ele nos libertaria de todas as impurezas que carregávamos. Em seguida, adotamos o silêncio e o jejum como companheiros fiéis até o tão esperado dia. Caijara me havia advertido que a lua estaria em seu auge, pendendo majestosamente no ponto mais alto do céu noturno, e que esse seria o momento perfeito para minha consagração. Finalmente o momento esperado chegou em demos início ao ritual.

Ajoelhado solenemente no centro do Descampo, eu aguardava enquanto Caijara entrava em um transe profundo. Seu corpo parecia se fundir com o ambiente, envolto por uma aura misteriosa. Ela entoava cânticos ancestrais com uma voz que oscilava entre os tons celestiais e os sussurros enigmáticos, evocando os espíritos benévolos que pairavam à nossa volta. Ciente de sua fragilidade de nesse momento de conexão espiritual, lancei sobre ela o encanto que havia aprendido em minhas incursões noturnas secretas. Durante anos, procurei pelas trevas ocultas, encontrando-me com entidades sombrias que se tornaram meus segundos mestres, aqueles cujo poder oculto minha mestra havia negado de mim. Quando as primeiras palavras do encantamento escaparam de meus lábios, ela abriu os olhos repentinamente, um sobressalto de terror atravessando seu rosto. No entanto, seu espanto não era direcionado apenas ao encantamento em si ou ao significado que ele representava para ela. Na janela de sua alma, refletida em seus olhos, pude enxergar um grito silencioso de socorro, não clamando por sua própria vida, mas pela minha. Era um aviso aflito, prenunciando as dores e horrores que encontraria pelo caminho dali em diante. No auge do encantamento, o corpo de Caijara flutuou no ar, suspenso por mãos invisíveis que pareciam emanar uma energia arrepiante. Ela contorcia-se de maneiras impossíveis para um ser humano, uma dança macabra que deveria desencadear angústia e agonia, mas não saía de seus lábios sequer um gemido de dor. Então, num instante repentino, ela parou e caiu abruptamente, seus olhos fixados em minha direção. Eles testemunharam o sacrilégio cometido naquele local sagrado.

Levantei-me com tristeza e me aproximei do corpo inerte de minha antiga mestra, ajoelhando-me diante dela e fechando cuidadosamente seus olhos, como se quisesse resguardar sua dignidade mesmo após a traição.

— Perdoe-me, mestra. Mas era necessário que nossos destinos se entrelaçassem nesse desfecho inevitável — murmurei com pesar, sentindo o peso da responsabilidade sobre meus ombros.

Estendi a mão e segurei o cajado que repousava ao lado de seu corpo, erguendo-o em direção à lua. Cantei invocações aos espíritos que me guiaram por essa jornada sombria, sentindo o poder de minha falecida mestra fluir através do meu ser. Uma sensação avassaladora tomou conta de mim, uma fusão entre minha própria essência e o legado ancestral que ela representava. Então, dei início ao ritual que me havia conduzido até ali. Cada passo do caminho percorrido ao longo desses anos, cada traição à minha mestra, cada sacrilégio em relação ao meu legado, cada desrespeito àquele lugar ancestral, tudo isso convergia para um único objetivo: trazer de volta à vida os pais que nunca conheci. Enquanto o ritual se estendia, risos guturais e sinistros ecoavam ao meu redor, permeando o ar com uma atmosfera nefasta. Sombras grotescas e distorcidas se contorciam em um redemoinho sombrio diante de mim, assumindo a forma de duas silhuetas humanas. Um misto de euforia e apreensão percorreu meu ser, pois acreditava ter alcançado meu objetivo de trazer de volta meus pais, perdidos para sempre. Mas à medida que as sombras se solidificavam, revelando detalhes macabros, percebi o cruel engano dos espíritos que me acompanhavam. Aquelas figuras assumiram formas monstruosas, transmutando-se em uma Anta com presas afiadas e um Lobo-Guará com olhos sinistros.

O terror se apossou de mim, e meus gritos desesperados e súplicas para que os espíritos cumprissem o que eu havia ordenado ecoaram pelo ar, carregados de uma angústia intensa. No entanto, em vez de atenderem ao meu apelo, as abominações se aproximavam cada vez mais, alimentando-se do meu medo e desespero. Testemunhei minha própria morte de forma violenta, meu corpo inerte caindo pesadamente no chão. Nos meus últimos momentos de consciência, fixei meus olhos na face de minha mestra e percebi, com uma sensação arrepiante, que seus olhos estavam abertos. Parecia que seus lábios se curvavam em um sinistro sorriso, como se ela estivesse ciente de que tudo isso era um preço a pagar pelo egoísmo e pela arrogância que me guiaram.

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