Queda Livre

Da série: Estórias inacabadas

“A liberdade é como grilhões em teus pés e a vida o oceano no qual estás a nadar”.

Eu estou no topo do mundo, e aqui, nenhum mal pode me alcançar. Sinto-me livre. Como se minha vida inteira tivesse sido passada em grilhões, com olhos vendados e boca amordaçada — o que, de certa forma, é verdade. E nestas condições, tudo o que eu sabia sobre o mundo era o que ouvia, principalmente, dos lábios de meus algozes. Mas um dia, de algum modo, me libertei e poderia conhecer a realidade com meus próprios olhos, mas a luz me feriu, e tudo o que eu via eram borrões em meio à intensa claridade. E mesmo depois de me acostumar com a luz ,ainda não podia ver verdadeiramente pois tudo o que me era apresentado era desconhecido, novo e incompreensível.

Eu estava livre, mas ainda assim, presa. Pois as correntes que me foram tiradas ainda permaneciam em minha alma. Era como uma criança pequena em meio à multidão de um parque de diversões, cujos pais se distanciaram para fazer algo e disseram-lhe “não saia daí”. Tinha um universo à minha frente, mas não podia explorá-lo.

***

Uma brisa suave toca meu rosto, trazendo lembranças e boas sensações, como quando era criança e meu avô me pegava no colo para ensinar sobre a vida e a morte, sobre amor e ódio, alegria e tristeza, conquistas e sacrifícios. A sensação é a mesma de quando colocamos um torrão de açúcar na boca após experimentarmos o sabor amargo da decepção.

Aqui em cima, eu sou deusa de minha própria existência. Olho para baixo, lá, as pessoas parecem formigas e os veículos automotores são como pequenos besouros. Os passos apressados das pessoas abaixo parecem um fluxo constante, como as ondas de um oceano. Elas se movimentam sem parar, como se estivessem correndo contra o tempo.Cada um carregando sua própria carga de preocupações e problemas. Elas parecem lamentar suas vidas, como se estivessem insatisfeitas com o caminho que escolheram. E eu me sinto conectada a elas, pois minha vida também já foi assim. Mas agora, aqui em cima, tudo é diferente.

Aqui em cima, eu me sinto livre. Livre da dor, da angústia e do ódio que antes me consumiam. É como estar em uma roda gigante suspensa no ar, durante uma chuva de verão. O vento sopra em meus cabelos e a chuva fria me refresca. Eu me sinto como se estivesse bebendo o arco-íris e comendo pãezinhos de mel recheados de infância. Tudo é perfeito e eu sou a rainha deste mundo.

Eu ergo meu olhar para o alto, contemplando o vasto céu noturno. A lua brilha intensamente, cravando seus raios prateados nas estrelas dispersas no firmamento. Mas minha atenção se volta para além daquela vista, para um lugar que reside dentro de mim. Um lugar onde sou livre para ser quem eu quiser, sem me preocupar com as opiniões alheias. É um espaço íntimo e pessoal, que me pertence somente.

Fecho os olhos para sentir a brisa fresca beijando minha face. Eu sinto a sensação de paz e gratidão me invadir. E por um breve instante sinto a dúvida me invadir. É a morte que eu busco? Eu sei que alguns desejam isso para mim, mas eu devo permitir que eles tenham a satisfação de me ver desistir? Estou hesitante. Dou um passo para trás, decidida a descer os degraus e voltar para casa onde posso desfrutar de uma xícara de café forte. Mas, infelizmente ou felizmente, meus pés vacilam e escorregam. Meu corpo se inclina para a frente e sinto o desequilíbrio me consumir.

***

Eu poderia escolher lutar, lutar para me segurar e viver, mas eu escolho deixar-me cair. Escolho deixar-me ser levada pelo vento, escolho me libertar das correntes que ainda me prendiam.

***

Eu abro meus olhos e vejo a vida passando por mim, a vida que eu sempre quis viver. Eu vejo os sorrisos, as lágrimas, a dor e a alegria. Eu vejo tudo o que eu perdi, mas também tudo o que eu ganhei. Eu vejo minha história. Eu vejo a minha liberdade.

Eu estou caindo livre, sem amarras, sem medo. A sensação é indescritível, é como se todas as minhas emoções estivessem à flor da pele. Sinto o vento soprando com força em meus cabelos, o coração acelerado, o medo e a euforia misturando-se em minha mente.

A velocidade aumenta e o chão se aproxima cada vez mais.

Eu estou livre, finalmente livre. Eu estou onde sempre quis estar, mas desta vez, eu não estou só. Eu estou cercada pela lembrança de todas as pessoas que amo, por todas as coisas que me fazem feliz.

Eu estou caindo livre, mas eu nunca estive tão segura.

Eu estou caindo livre, mas eu nunca estive tão viva.

Fecho os olhos e sorrio. Um sorriso triste de aceitação.

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Publicado originalmente em 28 de dezembro de 2017

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