Carta de Um Não Pai
Da série “Memórias Invisíveis”
jul 2016
Para minha filhinha Ana Luna, que habita os sonhos mais profundos e ébrios do papai.
Esta seria a semana mais feliz.
Pela primeira vez, eu te pegaria nos braços e diria que te amo.
Você não imagina o quanto ensaiei este momento, quando finalmente uma parte de mim respiraria o mesmo ar que você. E mesmo em um mundo tão frio e cruel, eu te aqueceria e mostraria que há, sim, muito amor, bondade e paz. Te ensinaria a enxergar o melhor nas pessoas.
Imaginei diversas vezes como seria o seu sorriso, a sua gargalhada, enquanto juntos fôssemos flagrados rabiscando a parede da sala com giz de cera, e sua mãe nos repreendesse, dizendo que teríamos que limpar tudo.
Ensaiei o dia da sua primeira festinha na casa dos amiguinhos, a nossa primeira convenção de animes, filmes e quadrinhos, você lá, fantasiada de Princesa Léia, enquanto eu seria o Darth Vader.
Imagino também o nosso primeiro piquenique no parque, o primeiro pega-pega e pique-esconde. Iríamos pular corda, brincar de amarelinha, fazer bolhas de sabão e nos divertir com barro (para que sua mãe nos chamasse a atenção mais uma vez).
Antes de dormir, eu leria para você um bom livro: contos de Machado, poemas de Vinícius, clássicos infantis como “O Rapto das Cebolinhas”, “Pluft, O Fantasminha”, e obras como “O Hobbit”, “As Crônicas de Nárnia” e “As Viagens de Gulliver”.
Te ensinaria a apreciar a filosofia, a mergulhar nas ideias de Platão, Aristóteles, Kant, Nietzsche, Sartre, Bauman e muitos outros.
Imagino como seria o dia em que você conheceria seu primeiro namorado ou namorada, ou ambos.
De uma coisa eu tenho certeza: te ensinaria a ser uma mulher forte e independente. Até pagaria aulas de jiu-jitsu para que você pudesse se defender dos garotos da escola que ousassem te desrespeitar. Os babacas das baladas que se cuidassem.
Mas por que imaginar tão longe no tempo? Você ainda é um bebê.
Pense na expressão do papai ao trocar sua fralda pela primeira vez. E na cena em que, na cozinha, eu teria que olhar a mamadeira e a panela no fogão, enquanto te seguraria com um braço e tentaria abrir a lata de leite com a outra mão. Seria divertido, não seria?
Meu sorriso quando você balbuciasse pela primeira vez seria bobo, mas não mais bobo do que o meu sorriso quando você dissesse “papai” pela primeira vez.
São tantos momentos para imaginar: o primeiro “não”, os primeiros passos, o primeiro arranhão, a primeira queda de bicicleta, o primeiro palavrão. E eu estaria lá, sempre presente, não perderia um instante.
Esta seria a semana mais feliz, pois seria o início de tudo isso. Mas você não virá.
Saiba que papai te ama. E digo isso mesmo sabendo que você não pode me ouvir; escrevo estas palavras sabendo que você não poderá lê-las. No final das contas, você não existe. Mas, por um breve momento, você existiu para mim, quando papai acreditou que um dia você viria. E mesmo agora, sabendo que não virá, papai ainda te ama.
***
E esta carta termina assim, sem final, sem conclusão. Assim como a minha história de pai e filha, que permanece em aberto, cheia de possibilidades e sonhos não realizados. Uma narrativa que, embora inacabada, é repleta de amor e esperança.
— Por Eruantano Alcarcalimo, Um Espírito Distorcido