Lula e o Socialismo

Lula e FHC em frente a um balcão cheio de copinhos descartáveis, adoçando o que parece ser seus cafés.

Publicado originalmente em Lula e o Socialismo

“Outros companheiros, em outras épocas, tentaram criar partidos revolucionários, tentaram criar partidos de massa, e a verdade é que quase todas as experiências, ou por causa da ditadura ou por causa do fracasso dos próprios militantes, não deram os resultados necessários.” Lula, no “Seminário Internacional 70 Anos de Experiência de Construção do Socialismo”, em 1987. https://jacobin.com.br/2023/10/lula-e-a-construcao-do-socialismo/

Esse discurso de Lula é revelador e nos permite entender os descaminhos (de um ponto de vista revolucionário) contemporâneos dele e do PT na administração de certos aparatos estatais brasileiros, especialmente a presidência da república. Só esse trecho revela um pensamento muito comum na esquerda: a de que a história das lutas populares começa na ditadura militar, e “que nunca na história do Brasil”, houve alguma coisa sólida nas lutas dos trabalhadores brasileiros. Nesse discurso, de um ponto de vista histórico, vemos uma força política de base proletária com uma ideologia anti-comunista, portanto anti-proletária, ganhando força.

Uma observação: os subtítulos no decorrer do texto são os usados pela transcrição da Jacobin, cujo link está acima. Tentei usar, para cada parte, uma citação que trouxesse o espírito da argumentação de Luiz Inácio.

Introdução

“Outros companheiros, em outras épocas, tentaram criar partidos revolucionários, tentaram criar partidos de massa, e a verdade é que quase todas as experiências, ou por causa da ditadura ou por causa do fracasso dos próprios militantes, não deram os resultados necessários.”

Note-se que “introdução” é um título que não existe na transcrição do discurso, coloquei aqui apenas para marcar o início do discurso. Dois pontos são bem apresentados por Lula: conhecimento teórico, e a criação do PT.

Há um quê de humildade, pois ele se coloca como alguém não estudado, porém profundamente preocupado com essa situação, ao mesmo tempo em que reivindica um aprendizado intuitivo da mais-valia (“sem ler o Capital”). Também argumenta que aprendeu a fazer política “sem ler livros”.

Algo que ele deixa passar, e que fica nítido, está em que a convivência coletiva, especialmente com os grandes intelectuais e quadros revolucionários que aderem ao PT, além obviamente, dos intelectuais e lutadores católicos, fizeram sim uma grande diferença na formação dele. Mais que ler livros, não só a luta prática, mas a luta prática coletiva e organizada, eleva as condições culturais e a práxis de qualquer pessoa.

Agora, sobre a criação do PT. Argumenta o agora Presidente que os comunistas (MR-8, PCdoB e PCB) não declaravam a ele sua condição, e sempre argumentaram que não era o momento de criar um partido. Todos estavam sob o guarda-chuva do MDB. Sentindo-se enganado, partiu para a fundação do Partido dos Trabalhadores.

Mais uma vez, é no que não está dito que encontramos o mais importante: no final dos anos 1970, as operações de caça e prisão dos comunistas estavam a pleno vapor, especialmente em sindicatos. As últimas grandes células comunistas estavam sendo destruídas uma a uma, e a clandestinidade era a única condição possível.

Ouso dizer que a desarticulação das direções dos partidos revolucionários, bem como de suas organizações de base tem um papel especial na construção do PT. Estando essas organizações inviabilizadas, o imperialismo permitiu uma abertura segura, inclusive com a criação de mais partidos, mesmo de esquerda, especialmente os não revolucionários.

A desarticulação dos trabalhadores brasileiros está em sintonia com o processo que em breve tempo culminaria no fim da experiência socialista soviética.

O que há de revolucionário no PT?

“Quando eu disse que a questão revolucionária é subjetiva, é porque eu acho o PT um dos partidos mais revolucionários que já surgiu na história desse país. Eu acho o PT revolucionário, não porque ele diga nos seus discursos ou nos seus escritos que é um partido revolucionário. É revolucionário porque nasceu com a ideia definida de que era preciso organizar a classe trabalhadora dando a ela consciência política para que ela se descobrisse enquanto força trabalhadora da sociedade.”

Creio que aqui temos a chave hermenêutica do discurso de Lula e do que seja o PT. Uma forma de espontaneísmo, de esperança num despertar socialista vindouro que não precisa ser trabalhado, e o mais grave, que não se relaciona com condições objetivas. E nem com toda a história dos trabalhadores brasileiros, construída em uma dura caminhada, não só no século XX, mas por toda a história desde a ocupação do território agora chamado Brasil.

Começa com desculpas em torno de uma possível falta de conhecimento teórico pessoal, que, como abordado acima, não é verdadeiro pois quando se está em um coletivo partidário, é impossível não crescer teórica e intelectualmente. Há um reforço aqui de que a prática está acima da teoria, o que no caso do PT, é uma mentira, pois desde a sua fundação há uma coerência ideológica, profundamente negacionista e anticomunista, que obriga os petistas a manter um linguajar que falsamente evoque o socialismo e a revolução, por conta da força que essas ideias, apesar de todo desmonte das organizações comunistas, ainda persistia na mente e corações dos trabalhadores brasileiros. Uma memória muito forte e presente ainda, apesar da ditadura, e que precisa ser destruída para que o PT atinja e mantenha a condição de força majoritária entre os trabalhadores.

Também encontramos uma espécie de “basismo”: a ideia de que basta ter organização dentro dos locais de trabalho para se garantir contra golpes de estado ou outras formas de repressão. Não adianta ter bases sólidas, em empresas e demais núcleos de base, se não há direção política disposta a facilitar e coordenar nacionalmente meios de ofensiva ou mesmo de resistência. Isso comprovamos lembrando do golpe de 1964, em que havia penetração democrática e socialista até mesmo nas forças armadas. Também prova esse ponto a incapacidade de o PT, no governo federal, reagir ao golpe contra a presidenta Dilma.

Sobre trabalhadores, rurais ou urbanos, alçados às tarefas de direção, me parece mais uma das infundadas frases de efeito, muito desrespeitosas com a história de lutas do povo brasileiro. Desde a fundação do Partido Comunista, e por toda a história de seus rachas, em suas diversas instâncias de direção, observa-se uma quantidade abundante de dirigentes e, mais importante e não citado por Lula, uma especial qualidade de dirigentes proletários e camponeses forjados nas lutas.

Construir a unidade da classe trabalhadora

“Há mais de cem anos o velho Marx dizia: “trabalhadores de todo mundo, uni-vos”. E a gente não consegue unir os trabalhadores do ABC, a gente não consegue unir os trabalhadores de São Paulo, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, quanto mais os trabalhadores do mundo.”

Nessa parte do discurso é contada uma história sobre como fazer na prática a união dos trabalhadores, tal como prescrita na frase “Trabalhadores de todo mundo, uni-vos!”. Cansado de participar dos debates sobre a dívida externa, apenas por parte dos trabalhadores de países devedores, Lula propõe debates com trabalhadores de países credores, para saber o que eles acham de viver bem por conta dos trabalhadores de países endividados…

Usando uma pauta interessante, desvia para questões morais, e mais uma vez, desconsidera o papel do proletariado organizado e rebaixa os objetivos políticos dos trabalhadores. Reclama do “muro de lamentações” local, e embora estenda para uma escala mundial, não propõe qualquer estratégia rumo ao socialismo.

A classe trabalhadora e a constituinte

Há uma breve avaliação, positiva, sobre a Constituinte, e o posicionamento sobre a atuação do PT (e do bloco de esquerda, acrescento eu), que com menos de 10% dos parlamentares, em uma correlação de forças desfavorável, mas calcados em forte pressão popular, fizeram avançar muitos temas importantes aos trabalhadores brasileiros.

Esta é uma bela memória que deveria ser articulada no terceiro governo Lula.

Para que serve uma vanguarda?

“A grande decepção que eu tive na minha vida depois de dezoito anos de sindicato, depois de fazer todos os tipos de greve que um dirigente sindical pode fazer, foi ir na porta da fábrica numa campanha e ver que o eleitor não sabia por que votava no candidato, não sabia distinguir quem era Afif Domingos ou quem era não sei mais quem, como se fosse tudo a mesma coisa. E quando ele pensa que é tudo a mesma coisa, é porque nós não estamos falando uma linguagem capaz de ser compreendida pelo conjunto da classe trabalhadora.”

Atualmente podemos afirmar que a esmagadora maioria dos parlamentares de esquerda tem poucas diferenças em relação à direita liberal. Lembrando a tradição latinoamericana, podemos pensar na esquerda brasileira como “liberais”, e o que chamamos de liberais ou neoliberais, de “conservadores”. E como manda essa tradição latinoamericana, nessa amorfa politicagem entre liberais e conservadores, a superação só pode se dar por forças revolucionárias. Eventualmente forças protofascistas se impõem, mas o marasmo da luta política se mantém assim.

E eu me pergunto, com sinceridade, se quem trata todos os políticos como iguais, está errado. Em geral, trata-se isso como despolitização. Mas será mesmo? Eu vejo isso como a falta de uma política revolucionária que faça avançar as lutas para além do suportado pela pelegada.

Como exemplo de uma liderança de vanguarda, Lula conta uma história de Vicentinho (“um dos mais extraordinários oradores de massa que esse país produziu”). Em uma greve, Vicentinho foi incumbido de defender perante os trabalhadores que uma greve na Autolatina fosse parada. Em frente aos mais de dez mil trabalhadores, percebe que não querem isso, que querem ir em frente. Aí Lula diz que frente à verdadeira vanguarda que são as massas, a liderança de vanguarda se resigna.

Muitos problemas aqui nessa história, como contada. Se lê que vanguarda é quem está à frente e vanguardista é que está muito à frente, sem conexão, entre outras reflexões problemáticas. E estabelece-se a comum e falsa dicotomia entre base e vanguarda.

Vanguarda, termo militar, é aquele grupo de combatentes que vai à luta primeiro para aprender como luta o inimigo, faz as primeiras sabotagens e execuções, além de mapear o terreno e as forças inimigas. Como um primeiro grupo, certamente terá grandes baixas. Mas os que sobrevivem, devem voltar à massa de soldados, ensinar tudo que aprenderam. Às massas cabe, de posse desse conhecimento, junto com a vanguarda, avançar e esmagar o inimigo.

Politicamente ocorre assim também. Todo trabalhador que se conscientiza da revolução socialista, se organiza e age, é vanguarda. E como vanguarda, estará inicialmente em pequenos grupos. Mas em dado momento, sua missão se conclui, e cabe às massas trabalhadoras, com sua vanguarda, esmagar, social e politicamente, a burguesia.

Logo após, uma visão sobre o futuro: Lula conta uma história sobre um grupo da FIEP que “procura os trabalhadores” para conversar sobre uma solução para o Brasil. Procuraram o PT, especificamente, por terem, nesse passado, uma visão que contempla o que é o PT atualmente. Essa aliança com a burguesia, chamada atualmente de “frente ampla”, há muito estava dada.

Uma classe trabalhadora socialista

“Nós ainda não conseguimos fazer a classe trabalhadora entender a necessidade de se organizar politicamente, a necessidade de militar politicamente. Ela tem a cabeça formada para ser totalmente apolítica. O conceito de que a política não presta ainda predomina no conjunto da classe trabalhadora, e é da nossa responsabilidade desfazer isso.”

E, por fim, temos ratificado e continuado o combate à organização revolucionária dos trabalhadores brasileiros. Uma sutil defesa de transformar todos os trabalhadores em socialistas, aliado ao tema da vanguarda ser o todo, a defesa do “político não é tudo igual” (como envelheceu mal essa afirmação levando em conta as ações do PT em seus governos), tudo isso compõe um conjunto que definia, então, a base anticomunista, e portanto, pró-burguesia, do PT, que contemporaneamente desnuda-se por total.

Seguem-se vários comentários sobre acertos, erros, não ver o socialismo em vida. Mas esse socialismo não tem um projeto, não tem uma vanguarda revolucionária organizada, não é exemplo e inspiração para as massas proletárias. Esse socialismo depende apenas da boa vontade de trabalhadores “politizados”, nos limites burgueses.

Paulo Henrique Rodrigues Pinheiro – https://bolha.us/@paulohrpinheiro