Cultura autofágica
Está prestes a ser lançado nos cinemas o mais novo filme da Pequena Sereia, seguindo a tendência de uma série de outros filmes recentes que foram refilmagens de obras ainda mais antigas, como Bela e a Fera, Mogli, Pinóquio e tantos outros. Anteriormente, havia a percepção de que contávamos sempre histórias semelhantes devido às suas similaridades, mas atualmente estamos, de fato, contando as mesmas histórias repetidamente. O novo ainda não surgiu e o antigo aparentemente se recusa a desaparecer.
O gênero dos super-heróis é um dos principais exemplos dessa cultura autofágica, presente tanto nos quadrinhos quanto no cinema, onde a tendência à repetição é notória. Quantas vezes o Superman já morreu e ressuscitou? E quantas vezes o tio Ben precisou morrer para ensinar uma lição ao Homem-Aranha? Há quase um século, acompanhamos histórias dos mesmos personagens. Será que algum dia um herói irá se aposentar e passar adiante a capa?
A indústria dos videogames, considerada a nova forma de arte, está começando a mostrar cada vez mais sinais de repetição. Novos jogos estão se tornando versões refeitas de antigos, e franquias como Resident Evil estão lançando mais remakes do que novos títulos. Mesmo gigantes como GTA, Call of Duty e Final Fantasy aderiram à moda dos remakes e remasters.
O cinema, por sua vez, não é exceção a esse padrão – na verdade, está imerso nele há muito tempo. É difícil citar filmes que não sejam adaptações literárias, e até mesmo a Disney, cujo foco agora são as releituras de seus clássicos, tem em sua lista de clássicos diversas adaptações de histórias populares. Quando se trata de conteúdo original, a empresa tem pouco a oferecer. Mesmo fora da Disney, a originalidade está em baixa. Os grandes clássicos do cinema, como O Poderoso Chefão, Harry Potter, O Senhor dos Anéis e O Silêncio dos Inocentes, além de dezenas de outros filmes de sucesso, são em grande parte adaptações de outras obras.
Repetidamente, somos expostos à mesma história em diferentes formatos: reboots, remasters, reimaginações e adaptações. Isso é mais do que uma tendência do cinema, é um sintoma da nossa cultura. É uma autofagia cultural produzida pelas limitações do capitalismo. É óbvio que essa tendência surgiria, produzir novas histórias é caro e arriscado – duas coisas que são contrárias ao espírito do capitalismo. Por que arriscar milhões em uma nova propriedade intelectual de um filme ou jogo, quando é possível aproveitar uma história já conhecida e comprovadamente bem-sucedida?
Enquanto estivermos presos nas mesmas histórias, ficaremos presos nos mesmos clichês, conceitos e no mesmo zeitgeist. Como podemos crescer culturalmente se não saímos desse ciclo vicioso? Para que surjam novas histórias, o novo terá que matar o velho. Pela primeira vez, novas obras terão que surgir apesar das velhas e não a partir delas. Cabe à produção cultural independente gestar o novo, com obras populares que preencham essa lacuna. São os gibis independentes que experimentam com as ideias mais absurdas, é o cinema independente que produz sem precisar da aprovação de uma sala de engravatados e são os podcasts em suas pequenas salas e microfones que transmitem histórias para o trabalhador em trânsito. O novo cabe a nós, os contadores de histórias do século XXI.