Autoajuda

O termo Autoajuda

O termo “autoajuda”, surpreendentemente presente em nossos dicionários, é bastante curioso. Isso se deve ao fato de que o sufixo “auto” denota algo que se refere a si mesmo, enquanto “ajuda” implica em prestar auxílio a alguém que não é capaz de resolver seus próprios problemas. Portanto, tentar se ajudar por meio da autoajuda é, no mínimo, incoerente, já que pressupõe a necessidade de ajuda externa para solucionar um problema que o indivíduo não consegue resolver sozinho. Além disso, ninguém pede ajuda a si próprio, pois se fosse capaz de se ajudar, não precisaria de ajuda. Apesar dessas contradições, o termo ganhou popularidade e a autoajuda é amplamente explorada em livros, vídeos, palestras, aulas e cursos. É curioso perceber que existe até mesmo uma “metaajuda”, ou seja, a ajuda para ajudar a si mesmo.

Ainda assim, queremos nos autoajudar com o que exatamente? O que temos tanto a aprender com nós mesmos? Ah, temos muita coisa, temos autoajuda econômica, autoajuda financeira, autoajuda emocional, auto ajuda psicológica, autoajuda intelectual e mais qualquer palavra que você queira colocar na frente do termo autoajuda. E o que liga todas essas coisas sobre o mesmo guarda chuva? Como que tantas coisas podem ser autoajuda? A verdade é que a autoajuda não é realmente sobre ajuda; pelo contrário, ela nega qualquer tipo de auxílio e responsabiliza o indivíduo por sua condição social e material, fazendo-o acreditar que é o único culpado por sua realidade. Embora a autoajuda seja disfarçada como uma forma de aprimoramento pessoal, na verdade ela promove a individualização do sucesso e a terceirização de responsabilidades externas para nós mesmos. Não é por acaso que esse gênero literário tomou forma como é conhecido hoje no capitalismo do século XIX e se fortaleceu no neoliberalismo pós-depressão. A autoajuda sempre esteve ligada às promessas de ascensão social do capitalismo, ao sonho americano de que somos capazes de vencer na vida, independentemente de onde viemos. No entanto, essa promessa é inalcançável para a grande maioria das pessoas, deixando-lhes apenas uma falsa esperança de que as coisas um dia serão melhores. Talvez você discorde de mim, talvez você seja um dos que acredita que somos responsáveis pelos nossos próprios destinos, que cabe a nós mesmos lutar por um futuro melhor e que nossas oportunidades somos nós que criamos que os que não obtiveram o sucesso não foram determinados o suficiente e que portanto a autoajuda é uma forma fundamental de desenvolvimento pessoal para essas pessoas. É natural pensar assim o discurso meritocrático é tentador, ele nos empodera de nossos triunfos, da o tapinha em nossas costas e diz “parabéns, foi tudo graças a você” e nos sentimos bem com isso no final do dia. Mas a verdade é que temos menos controle sobre nossas vidas do que gostamos de acreditar, nossos esforços pouco importam a luz de nossas limitações, somos tolhidos pela nossa história, pela realidade imposta a nós, como Marx brilhantemente definiu “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”, ou seja, nosso futuro é herdado sob as condições de nosso passado, é impossível garantir uma vida de prosperidades a partir de condições hostis. Você só é capaz de melhorar quando existe a possibilidade, qual o mérito do sucesso de alguém que literalmente nasceu sobre ele e qual é o desmérito do “fracasso” de quem sempre foi privado de qualquer possibilidade de ascensão social. É infundado o pensamento que as coisas acontecem em razão do mérito quando certas escolhas não estão nas mãos dos indivíduos, seu emprego é tanto mérito seu quando das condições históricas e sociais que permitiram que ele existisse, você não controla essas variáveis, seu acesso a educação, amparo social e o desenvolvimento da demanda que geram possibilidades de emprego não podem ser alterados pelos seus esforços. É preciso entender que as pessoas se encontram na miséria não por preguiça ou falta de uma mentalidade de sucesso, as pessoas são miseráveis porque o mundo assim as fez, nunca tiveram acesso a educação, a serviços sociais, saúde, moradia ou qualquer tipo de rede de amparo, vivem com acesso somente a empregos precários que garantem unicamente meios de subsistência e nada mais, como é possível dizer que essas pessoas podem mudar de vida mudando sua mentalidade, sendo mais esforçadas, inteligentes e seguindo a cartilha de qualquer livro ou guru de autoajuda quando a realidade cerra qualquer tipo de querer?

Nesse sentido a autoajuda é a homeopatia fornecida pelo capitalismo, pequenas doses de esperança para o indivíduo manter-se operante acreditando na melhora enquanto o capitalismo constantemente nós rouba o protagonismo da história, nós desempodera da realidade, nós transformam em mero trabalhadores-consumidores vivendo vidas precárias e sem perspectiva reais de futuro como Mark Fisher descreve com precisão em Realismo Capitalista:

Para funcionar com eficiência como um componente do modo de produção just-in-time é necessário desenvolver uma capacidade de responder a eventos imprevisíveis, é preciso aprender a viver em condições de total instabilidade [...]. Períodos de trabalho alternam-se com dias de desemprego. De repente, você se vê preso em uma série de empregos de curto prazo,impossibilitado de planejar o futuro

É nesse ponto que a autoajuda surge nos condicionando as necessidades de um modo de produção desumanizante, as condições humanas vão se diluindo frente às exigências do capital e aos poucos vamos caminhando a total submissão. A autoajuda é por tanto no fim uma ferramenta de doutrinação neoliberal.

Individualização

Comentei brevemente que a autoajuda é a individualização do sucesso, voltemos a esse tópico da individualização por mais algumas linhas. Frases como “não reclame trabalhe”, “não pense em crise trabalhe”, “Deixe de ser vítima” são muito fáceis de se encontrar em livros de autoajuda, na boca de gurus e em discursos políticos, quase como se a situação social em que vivemos fosse culpa de uma má vontade de trabalhar e não consequência de péssimas políticas públicas. Novamente Mark Fisher descreve com exatidão:

Já há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da “responsabilização”. Cada membro individual da classe subordinada é encorajado a sentir que sua pobreza, falta de oportunidades, ou desemprego é culpa sua e somente sua. Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso, foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são apenas desculpas, invocadas pelos fracos).

O discurso de autoajuda misturado a política neoliberal fizeram conceitos como desigualdade, desemprego, educação e saúde passarem a ser problemas do indivíduo como se ele sozinho fosse responsável por campos sociais que estão muito acima de sua realidade, ele que lute contra o desemprego, ele que consiga acesso a saúde e educação, ele que lute contra sua desigualdade perante o patrão, a responsabilidade é dele. Nessa mesma linha problemas psicológicos foram individualizadas como decorrentes de desregulações do indivíduo e não como sintoma de um mundo cada vez mais desumano que ignora as demandas sociais, Mark Fisher aponta:

Considerá-los um problema químico e biológico individual é uma vantagem enorme para o capitalismo. Primeiramente, isso reforça a característica do próprio sistema em direcionar seus impulsos a uma individualização exacerbada (se você não está bem é bom por conta das reações químicas de seu cérebro). Em segundo lugar, cria um mercado enormemente lucrativo para multinacionais farmacêuticas desovarem seus produtos

Dessa forma acredito que é possível indicar a autoajuda como sintoma de um capitalismo neoliberal que tenta apontar que o motivo do nossos “fracassos” somos nós próprios e não toda a estrutura política imposta sobre nós. Assim é importante entender que nós como indivíduos não devemos nos afligir como responsáveis por coisas que estão muito acima de nós, assim como não somos responsáveis pela chuva que cai sobre nossas cabeças e o sol que castiga nossas costas, o desemprego, a solidão e a pobreza também não são de nossa culpa e muitas vezes nada podemos fazer para mudá los como indivíduos, para isso cabe a nós como coletivo mudar a ordem vigente a nosso favor.

Soluções

Abandonar a autoajuda pode ser uma tarefa difícil, muitas vezes ela acaba criando um efeito placebo sobre nossas vidas. Qualquer tipo de mudança positiva que encontramos acabamos por culpar a autoajuda mesmo não havendo evidência alguma que ela seja a responsável direta por qualquer tipo de melhora, então agarramos a esse remédio por acreditar que nada mais poderia fazer o mesmo efeito. A verdade é que muito provavelmente o único efeito que a autoajuda está gerando é a percepção da melhora e não a melhora em si. Para melhorarmos de verdade precisamos de ajuda e não de autoajuda, além de mudarmos a nós mesmos devemos mudar aquilo que nos aflige externamente, devemos mudar o mundo.

Vamos começar com as soluções individuais, se você está infeliz com sua vida talvez você precise de ajuda, e com ajuda quero dizer ajuda profissional, ajuda psicológica. A realidade que vivemos nos adoece e muitas vezes precisamos de ajuda para lidar com ela, a psicologia ou a psiquiatria nos darão as armas necessárias para isso. O mundo individualizado nos faz crer que devemos resolver nossos problemas sozinhos mas não há nada de errado em entender suas limitações e pedir ajuda quando necessária. O profissional correto pode mudar sua vida significativamente se você se permitir ser ajudado.

Agora a parte difícil. É impossível se sentir bem consigo mesmo em um mundo insalubre, as condições materiais o fazem infeliz e nenhuma mudança pessoal vai conseguir mudar isso, se quisermos melhorar como indivíduos temos que primeiro melhorar a realidade em que estamos inseridos e isso não é fácil e muito menos pode ser feito sozinho. Só somos capazes de melhorar o mundo ao nosso redor através de organização e trabalho, como se organizar e em o que trabalhar vai depender da realidade de cada um, talvez sua condição de trabalho seja ruim então vale se juntar com seus colegas para reivindicar condições melhores