jackson

... leio e escrevo {códigos}, poesia, (receitas) e prosa...

Dedico as pessoas amigas surdas.

A gente vivi numa sociedade cheia de preconceitos e por isso, é difícil não replicarmos alguns. É como andar numa rua alagada em dia de chuva, um pulinho aqui, outro acolá, mas mesmo assim vamos nos sujar, e todo mundo vai ver a mancha.

Recentemente, devido às “redes sociais [Ligação externa 1]”, tanto nossa intolerância quanto o combate a ela ficou mais evidente. Aos poucos, estamos nos tocando sobre nossos grandes preconceitos, como racismo, machismo, misoginia, homofobia, transfobia, preconceito religioso e linguístico (na verdade, preconceito de classe disfarçado de linguístico…), dentre outros. Mas, tem um que ainda parece passar despercebido: o capacitismo (com o paternalismo).

Em resumo, capacitismo é o preconceito contra pessoas com deficiência. E talvez, por está relacionado a esse termo não muito preciso (deficiência), o capacitismo ainda não seja percebido como uma grande mancha de lama em nossa roupinha limpa, naquele dia de chuva.

O termo deficiência me parece impreciso, porque está relacionado a ideia de ausência e/ou falta, só que esta ausência e/ou falta é imposta de forma acrítica, a partir de um padrão de normatividade já dado como natural, e desde sempre. Segundo esta lógica, uma pessoa com deficiência é aquela a qual falta algo que a maioria tem.

Mas, e se em todos os lugares houvesse rampas adaptadas para pessoas cadeirantes, placas com textos adaptados ou em braile para pessoas cegas, ou com baixa visão, ambientes livres de perturbações sensoriais para pessoas autistas e neuro diversas e, se tivéssemos acessibilidade em Libras para pessoas surdas? Já imaginou um mundo assim?

Quando refletimos sobre estas questões, chegamos a conclusão que a ideia de deficiência é vista apenas pela perspectiva patológica, de ausência e/ou falta, mas nunca pela perspectiva inclusiva, de responsabilidade social coletiva de prover suporte para as necessidades específicas dessas minorias (algumas delas, grupos minorizados).

Por isso prefiro o termo necessidade específica, porque cada um dos grupos acima citados tem necessidades específicas que poderiam ser supridas se houvesse o mínimo de disposição de nossa parte, enquanto sociedade. É muito fácil chamar o outro de deficiente quando não se precisa de nenhum tipo de suporte específico. Acessibilidade dá trabalho, mas essas pessoas também não pagam seus impostos? E os seus direitos?

Atualização 26.10.24 Interagindo com essa postagem da Geisa Farini, sobre expressões capacitistas, fui alertado que o termo “pessoas com necessidades específicas” também é impreciso porque é mais abrangente e contempla, por exemplo, mulheres grávidas, pessoas obesas, idosas, com mobilidade reduzida momentaneamente (por cirurgias), etc. Sempre bom conversar com quem experiencia essas vivências!

Dito isso, um dos preconceitos que mais me incomoda, principalmente no Instagram, são vídeos de pessoas, majoritariamente ouvintes, vendendo curso de Libras, sempre usando variações da frase “como ajudar o surdo…”, como se a pessoa surda fosse sempre a necessitada.

As pessoas surdas estão aí, vivendo suas vidas desde sempre, trabalhando, pagando seus impostos, cumprindo seus deveres sem nem sempre terem seus direitos garantidos e lidando com nossa ignorância em relação a elas, desde sempre. Como todo grupo que sofre preconceitos, a pessoa surda também desenvolve resiliência.

Essa insistência em “paternalizar” a necessidade específica da pessoa surda, a qual é uma bem específica, pois linguística, é o trocadilho que fiz no título do texto, “capaternismo” ou “patercitismo”, que me parece ser a intersecção do capacitismo com o paternalismo. Caberia um “capacinismo” também…

Interseccionalidade é um conceito (que vale a pena ser estudado) criado pela Kimberlé Crenshaw e, em resumo, tem a ver com “formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação…”. Aqui no caso, a relação entre capacitismo e paternalismo e os malefícios decorrentes, como os diversos preconceitos imputados à pessoa surda.

Por fim, a pessoa surda não é “alguém” com uma ausência e/ou falta incapacitante, ela possui sua própria língua; que por um acaso, se comemora hoje, dia 24 de abril. Você já ouviu alguém dizer: “vou aprender inglês para ajudar um americano…”? Se isso soa estranho, por que não nos incomodamos quando a língua em questão é a Libras?

Os surdos também não me parecem ser uma minoria, antes um grupo minorizado. E como disse antes, e nunca me repito, sei que é difícil não replicarmos preconceitos quando estamos imersos numa sociedade repleta deles, mas isso não nos isenta de nossa responsabilidade pessoal, principalmente se quisermos compartilhar as oportunidades com equidade social (igualdade com justiça).

Ah, esta não é a primeira vez que escrevo sobre Libras [Ligação externa 2].

Ligação externa 1: Neste outro texto explico porque uso esse termo entre parênteses

Ligação externa 2: Libras.

Rascunhos de escrita, antes de publicação no sitezinho

Sobre leitura…

“A diferença entre a literatura e o jornalismo é que o jornalismo é ilegível e a literatura não é lida.” Oscar Wilde (dizem).

Minha mãe me ensinou a ler cedo, em casa. E depois que aprendi, ela me repreendia, dizendo que ficaria doido, porque minha atenção era só textos; eu mal olhava o caminho que seguia, apenas placas, postes, carros, camisas… lia absolutamente tudo, até papel catado no chão, e nessas horas, ela me brigava!

No início escolar, tive que esperar um ano em casa, porque meus colegas de turma ainda estavam aprendendo, e a professora não sabia o que fazer com uma criança já leitora, isolada no canto da sala.

Quando gostava de uma estória, relia tantas vezes que acabava memorizando. E algumas tias me pediam para recontar, enquanto elas acompanhavam no livro para ver se pulava alguma palavra. Eu lia certinho, e elas ficavam impressionadas!

Ler, para mim, é ver imagens no pensamento. A palavra salta do papel para a mente. Só adulto, descobri que isso não é tão natural, não para a maioria. De qualquer forma, ler é uma habilidade, e como tal, pode ser desenvolvida.

Existe uma cobrança muito forte sobre o ato de ler, uma obrigação. Na realidade, um disfarce para a distinção do livro, enquanto objeto de consumo intelectualizado, e a imagem idealizada da pessoa leitora, enquanto erudita.

Uma confusão entre erudição e inteligência (quantidade e qualidade), já que ler muito não é garantia de salto qualitativo e livro tem custos, pois produto de uma lógica que visa o lucro; as livrarias fechando são evidências dessa contradição.

Talvez por isso, o alarde sobre o fim da leitura e do livro. Mas enquanto houver pessoas, haverá leitura, ainda que não existam livros, porque “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (Paulo Freire). Não lemos apenas texto escrito, mas tudo que nos rodeia, desde sempre. As culturas de tradição oral são prova disso.

Um vídeo, uma música, um podcast, uma imagem, um meme, uma peça teatral, uma apresentação de dança, tudo é texto, ainda que numa modalidade diferente. Mais importante que ler apenas livros, é saber interpretar a realidade ao redor. Do que adiante ter doutorado e não dar “bom dia” ao porteiro?

O importante é ler, do jeito que se pode, tudo que se quer, sem se preocupar com as leituras alheias, pois cada um tem seu tempo e tipo de leitura. Melhor ainda se souber seus direitos (os imprescritíveis do leitor, propostos por Daniel Pennac em seu “Como um romance”):

  1. O direito de não ler.
  2. O direito de pular páginas.
  3. O direito de não terminar um livro.
  4. O direito de reler.
  5. O direito de ler qualquer coisa.
  6. O direito ao bovarismo, ou direito de se esvair da realidade.
  7. O direito de ler em qualquer lugar.
  8. O direito de ler frases soltas no livro.
  9. O direito de ler em voz alta.
  10. O direito de nos calar.

Não percebi na época, mas minha mãe também me ensinou a ler pessoas. Ela mesma foi meu primeiro “livro”.

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