Sobre a mal(bem)dição do escritor…
Um dos princípios mais conhecidos da escrita é a Arma de Tchekhov, que nas palavras de Raimundo Carrero, no seu livro “A preparação do escritor”, diz:
... se o narrador coloca uma corda na parede, ela tem que ter alguma função, nem que seja para enforcar o narrador.
Relembrando, como ele ainda diz: “Narrador não é autor. Autor não é narrador.” Autor somos nós, brincando de deus nos mundos que criamos, narrador são nossas personagens, as vozes que usamos para contar (ou não) sobre os mundos que habitam; “o autor escreve, o narrador conta.”
O que chamo de mal(bem)dição do escritor não é bem um princípio, mas uma percepção não dita por nós que escrevemos, que é olhar uma única cena e re(vi)ver suas múltiplas possibilidades. No livro “Exercices de Style” de Raymond Queneau, ele mostra como contar a mesma história 99 vezes, cada uma com um estilo diferente. No caso da mal(bem)dição, a variação vai além do estilo.
Imagine pedir para um grupo de pessoas escrever uma cena na qual alguém, numa cozinha, pega um copo d'água na pia. Cada pessoa vai escrever a sua própria versão, provavelmente diferentes entre si. E antes que cada uma decida sobre seu texto final, provavelmente ainda vão reescrever algumas versões antes disso. Essa é a mal(bem)dição do escritor.
Somos uma única pessoa autora, escrevendo sobre uma única cena, mas com várias vozes na nossa cabeça dizendo como cada versão deveria ser.
É uma benção porque faz parte da atividade de escrita a imaginação dessas várias possibilidades, o que chamamos de criatividade. É uma maldição porque, geralmente, é preciso escolher apenas uma delas, para continuar; uma redução das possibilidades de nosso multiverso narrativo. Ou como bem resumiu o Thiago, lá no Mastodon, a mal(bem)dição do escritor é um processo de computação quântica…
Rascunhos de escrita, antes de publicação no sitezinho